quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

1968, VII: Breve intermezzo sobre o Velho Justo

Meu avô materno, o Velho Justo, foi quem morreu em março de 1968. Nenhum de nós, seus netos, alguma vez se atreveu a chamá-lo assim; só inventamos o nome Velho Justo depois de sua morte. Seu nome: Justo Rangel Mendes de Moraes, ou, como preferia se assinar, Justo de Moraes. O Doutor Justo.

Velho, porque nasceu em Rio Grande, lá no sul do Rio Grande do Sul, em 1883, e morreu com 85 anos em 1968. O pai era de família paulista antiga, a mãe, uma maragatona prima de Bento Gonçalves, o dirigente dos farrapos. Estudante de direito, meteu-se na revolta contra a vacina obrigatória. Quando se formou, associou-se a Inglês de Souza e a seu colega de turma, Herbert Moses, e fundaram os três um escritório de advocacia, que persistiu até a morte de Tio Luiz em 1978. Vovô defendeu os revoltosos de 1922 e os tenentes; em 1933 foi a São Paulo para conciliar o estado e o governo central. Consultado por Getúlio, indica-lhe o nome de Armando de Salles Oliveira para interventor em São Paulo, e se elege deputado corporativo, no período constitucional do primeiro governo Vargas.

Em 1964 apoia o golpe militar, mas, embora amigo pessoal de vários membros do novo regime, rompe com este em 1966, numa entrevista dada ao jornal Ultima Hora. Mesmo assim, quando morre em 1968, é homenageado pelo governo Costa e Silva.

Vovô era um libertário. Melhor, me corrijo: era um cara paradoxal. Muito autoritário no relacionamento pessoal, era publicamente um libertário extremado, ultra-radical, tipo não concordo com o que você diz, mas defendo até a morte seu direito de ter uma própria opinião.

A última vez que estive com ele foi no sábado antes de sua morte, 9 de março. Saí da praia em Ipanema, era um dia super ensolarado, comprei na banca de jornais da Praça General Osório, ali ao lado de onde havia um vendedor de coco fresco e de caldo de cana, o Estadão de sábado — chegava ali sempre ao meio-dia. Pesquei o suplemento literário e vi, logo na capa do suplemento, um artigo de Willy Lewin, “Esta prateleira do fantástico,” sobre ficção científica. Me citava um artigo recém-publicado no Quarto Caderno, e me elogiava: subi aos céus.

Era a primeira vez que alguém me citava, genial, maravilha das maravilhas!

Cheguei na casa da vovó, eram já quatro da tarde, subi correndo as escadas do fundo, da parte de trás da casa, a escada de serviço, meio pingando água e deixando rastro de areia dentro de casa, e vejo, no gabinete de vovô que ficava no andar do meio, vovô, na cadeira de balanço, e o Neco, o Prudente. Entro correndo no gabinete, vovô não se mexe — em geral reclamava, que é isso? Furacão? Mas daquela vez não reclamou. Mostro ao Neco a citação de Willy Lewin, ele brinca comigo a respeito. Aí olho para vovô. Vovô estava sempre meio ausente, calado, olhando pela porta da varanda para fora, parece que estava olhando os topos das árvores do jardim e, lá longe, a rua. Tava com os olhos fundos. Cara de passarinho triste, como dizia mamãe.

E' minha última memória dele.

1968, VI: Marcuse; e a morte de vovô

Já escrevia no Quarto Caderno desde fins de setembro de 1967. Escrevia sobre o que me vinha à cabeça: comecei com Borges, falei de Wittgenstein, emplaquei um novo sucesso de público, no finzinho do ano, com um artigo, “Henri Lefebvre x Estruturalismo,” no qual, defendendo o estruturalismo dos ataques de Henri Lefebvre (era a tal coisa, o estruturalismo negava os humanismos...), expliquei o que era estrutura, modelo, enfim, toda a fauna teórica dos estruturalistas.

(Conto de onde tirei minhas explicações: não vieram de nenhum livro de Lévi-Strauss, vieram das aulas, na Escola Nacional de Química, sobre sistemas de controle, dadas por meu amigo muito querido, Ieuda Ciornai. Depois de ler meia-dúzia de ensaios — franceses, esclareço — muito confusos, sobre estruturalismos et caterva, onde se falava a toda hora sobre estrutura e modelo, resolvi dizer com linguagem de livro-texto de engenharia, o que era aquilo, estrutura, modelo, simulação, e para que serviam esses conceitos. Ouvi de muita gente, ah, agora entendi o que é o estruturalismo. Melhor foi a brincadeira do Ieuda para mim: como M Jourdain que não sabia que falava em prosa, você mostrou que sou estruturalista sem saber...)

Em fevereiro de 1968 começa a onda Marcuse. Tinha lido um pouco antes sobre One-Dimensional Man no Time; não me chamou muito a atenção. Em começos de março, Paulo Francis, que editava o Quarto Caderno junto com Zé Lino Grünewald, me chama e diz, vai falar com o Jorge Zahar, que publicou dois livros de Marcuse e um livro de um dissidente da Alemanha Oriental de quem você vai gostar. Aliás, você vai gostar dos dois, de Marcuse e de Robert Havemann. Pega os livros com ele e me faz artigos a respeito, rápido.

(Sobre o livro de Havemann, Dialektik ohne Dogma?, falo mais adiante.)

Dia 12 de março, uma terça-feira meio nublada, de tarde, três horas, escapo de meu trabalho na Editora Delta e vou me encontrar com o Zahar, no escritório dele, em cima da Livraria Ler, na Rua México. Ele já estava com os livros separados, Havemann e dois Marcuses, Eros e Civilização e Ideologia da Sociedade Industrial, título gênero o-filho-que-era-mãe para a tradução de One-Dimensional Man.

Bato uma hora de papo com o Zahar, tomo dois cafezinhos, e vou-me embora. Desço pela escada de fundos. Na escada, um encontro surpresa: Tio Luiz, irmão de mamãe, desce esbaforido, alucinado. Me vê, diz, vamos embora, vamos embora! O escritório de advocacia de vovô e Tio Luiz ficava no mesmo prédio, no quarto andar, de modo que não estranho encontrá-lo naquele canto. De qualquer modo não dei bola, ignorei direto o que ele dizia, e voltei para meu trabalho.

Chego em casa às 6 da tarde, pensando em tomar banho e trocar de roupa — ia ter uma vernissage badalada na Galeria Goeldi, na Praça General Osório, e queria chegar cedo, ia ser um ótimo lugar de paquera.

Bem dito, pior feito. Saio dos braços de Marcuse e Havemann e despenco no meio da linha-dura, dos coronéis de Aragarças e Jacareacanga. Chego em casa, a empregada está me esperando com um recado: vai correndo para a casa de seus avós, seu avô morreu e seus pais já estão lá. Tomo um banho urgente, troco de camisa — estava de terno e de terno fico, porque em 1968 ainda se usava terno em velórios e enterros — e vou tascado para a casa da vovó, que é como a gente, os primos do lado de mamãe, do lado Moraes, chamávamos a casa nossos meus avós comuns.

Chego pelas sete da noite, ou pouco depois. A casa, enorme, uma casa normanda no meio de um jardim que era quase um parque, na Rainha Elizabeth, entre Copacabana e Raul Pompéia, estava iluminada como se fosse para uma tremenda festança. Entro, e a primeira pessoa que vejo é Iná, Iná de Moraes, ex-mulher do Neco, do Prudente, e prima também. Contava para todo mundo, fui ao Jockey (a sede antiga no centro do Rio) e vi a porta fechada pela metade, como fazem quando morre sócio importante. Perguntei na portaria, qual é o defunto do dia? O porteiro sem jeito me diz, seu tio o Dr. Justo.

Vou até o andar do meio (a casa tinha três andares), ao quarto de vovô e vovó, onde vovô estava sendo velado. Estava amortalhado, no mesmo pijama em que havia morrido — fazia a sesta, de tarde, e morreu dormindo — em cima da cama. Mesma cara cesárea, nariz em gancho, sem sorrir, pois vovô quase nunca sorria. Pediu que o amortalhassem e que lhe dessem um caixão de terceira. A Santa Casa, de onde era alguma coisa importante, protestou, quis dar caixão de luxo; mamãe não deixou. No meio da noite foi posto no caixão de ripas, como havia determinado, e carregado pela escadaria principal da casa para a varanda grande do primeiro andar. Tinha algumas pessoas chegando para o velório; fiquei zanzando sem objetivo, falando com um e com outro, até quase cair de sono. Bibi, a governanta, mais atarantada que eu, servia empadinhas de queijo, ramequins, a toda hora. Uma da manhã, vestido como havia chegado, me estico nalguma cama e durmo. (Papai e mamãe aguentaram firme a noite toda.)

Tomo banho, troco de camisa de manhã, me desamassam um pouco o terno, e vou fazer sala aos que vão chegando para o velório. Uma porção de figurões do regime militar: Eduardo Gomes, o Brigadeiro, sua irmã D. Eliane, Juraci Magalhães, Juarez Távora, que depois fez discurso à beira do túmulo de vovô, o representante do Costa e Slva, e todos os aragarcianos, os coronéis das revoltas de Aragarças e Jacareacanga, Haroldo Veloso, Paulo Vítor, Leuzinger Marques Lima e Burnier.

Saí de Marcuse e Havemann para o meio da linha duríssima do regime. Estavam ali porque vovô havia sido seu advogado, e porque Tio Luiz, Luiz Mendes de Moraes Neto, tinha sido aragarciano também. (A gíria não é minha; eles é que se chamavam entre si aragarcianos.)

Família muito doida, a família de mamãe. De um lado Tia Maria, Maria Werneck de Castro, comunista histórica, companheira de Olga Benário, a quem ela e Nise Silveira chamavam Maria Prestes; do outro lado Tio Luiz, de extrema-direita. Até que nós, os netos, não saímos tão pirados assim...

Na hora da saida do enterro carregamos o caixão de vovô pelo jardim da casa, onde ele gostava tanto de passear. A polícia fechou a Rainha Elizabeth, de tanta gente que estava no velório. No cemitério, discursos do Ribeiro de Castro, pela OAB, e de Juarez Távora.

Voltamos, papai, mamãe e eu, exaustos para casa em Botafogo.

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

1968, V: Como se faz um intelectual

Comecei como ensaísta em 1967, com vinte e um anos. Graças a meu pai, crítico de teatro — intelectual, portanto. Um dia, em 1966, mostro a ele um ensaio anarquista que escrevera: discutia movimentos de massas, e argumentava que todo movimento de massas, seguindo alguma liderança, tinha necessariamente que ser alienado. Movimento de massas é sempre alienação, concluía.

Papai gostou, pegou no telefone, marcou um encontro para mim com Paulo Francis, que editava ou co-editava a Revista da Civilização, e lá fui eu, manuscrito debaixo do braço, me encontrar com o Paulo no escritório da Paz e Terra, no Edifício Avenida Central. Sento na frente do Paulo, vejo aquela cabeleira cacheada, branca e redonda à volta do rosto redondo, os óculos de hipermétrope que lhe aumentavam imenso os olhos azuis, e espero o veredito. Paulo lê tudo rápido, são dez páginas, e diz, bom, é diferente, mas está bem argumentado. Vou discutir com o pessoal; vou ver se dá para a gente publicar.

Foi recusado. Moacyr Félix, editor-geral — depois ficamos amigos — me chama alguns dias mais tarde e me diz na bucha, é politicamente inconveniente, contraria tudo o que digo. Não dá pra publicar. Mas o Paulo me chama e acrescenta, sobre literatura, você escreve? Respondo: posso escrever. Que autor? Jorge Luis Borges (foi o primeiro em quem pensei). Ótimo, conclui; me dá um texto para o Quarto Caderno. 160 linhas, 20 toques. E me deu uma porção de laudas marcadas, de datilografia, do Correio da Manhã.

Sofri horrores no fim de semana para escrever o tal artigo sobre Borges. Rascunhei, revisei, re-revisei. Foram 160 linhas exatas. Entreguei ao Paulo 2a. feira. Lê em diagonal, me diz: sai domingo. Passei a semana toda agoniado; nem saí no sábado. Dormi em casa de meus avós, em Copacabana. Vovô assinava tudo quanto é jornal do Rio naquele tempo, o Correio, o JB, Diário Carioca — Neco, meu primo, Prudente de Moraes, neto, havia sido editor do DC — e mais o Diário de Notícias, O Jornal, e, claro, o Jornal do Commercio (digo claro porque vovô, advogado do Chatô e dos Diários Associados, era presidente da empresa que publicava o JC). Acordei cedo, avancei sobre a pilha dos jornais já separados para vovô. Sob os protestos de Bibi a governanta da casa, puxei o Correio, catei lá dentro o Quarto Caderno. Nada na capa, nada na página dois e na três. Mas — coração aos pulos — vi, embaixo, na quarta página, “À procura de Borges,” e ao lado do título, meu nome.

Na praia, naquele dia, em frente à Montenegro, a Claudinha, uma garota meio besta, fala comigo, Chicão, você viu esse artigo sobre Borges no Quarto Caderno? Meio diferente o que o autor diz dele. Respondi com cara sei lá de que, vi sim, fui eu que escrevi. E olhei ela nos olhos, pra sentir a surpresa dela. Tremenda curtição, esse momento, num domingo de primavera de 1967.

Minhas lembranças estão cheias de livros. Na casa onde morei primeiro, com meus pais, na Rua Dezenove de Fevereiro, em Botafogo, a sala de visitas, na frente, com janelas debruçadas para a calçada da rua, era em parte escritório de papai e de Vuvu, meu avô paterno. E tinha duas paredes cobertas de livros. Na casa da vovó, na casa de meus avós maternos, em Copacabana, existiam quase vinte mil livros, distribuídos no escritório de vovô, na saleta do primeiro andar, um pequeno escritório onde vovô, grande advogado, recebia clientes em casa, e no hall do andar do meio. Havia até um bibliotecário, que fichava, organizava e classificava todos os livros de vovô, o “seu” Matta, alto, de bigodes finos sobre os lábios, e orelhas de abano.

Vuvu, Raul Moitinho da Costa Doria, meu avô paterno, era um comerciante, mas seu irmão caçula, Tunico, Antonio Moitinho Doria, havia sido também um grande advogado, como meu avô materno. (Não se davam, embora advogados; odiavam-se cordialmente.) E Tunico escrevia bem; escrevia muito bem mesmo. (O Velho Justo, meu avô materno, tinha ao contrário um texto burocrático e sem colorido; era grande mesmo só nas defesas orais, nos tribunais). Subo pelas linhas familiares, à procura de talento literário: meu bisavô paterno, Diocleciano da Costa Doria, ou Doloque, era médico e político. Deixou poucos textos, além de sua tese de doutorado. Seu pai, José da Costa Doria, fora professor de primeiras letras no interior da Bahia, em Itapicuru. Depois interessou-se por teatro e foi um dos fundadores do primeiro teatro de Aracaju, em 1858.

E — afinal lembro que somos todos sobrinhos distantes do Padre Vieira, de Antonio Vieira, cuja irmã Dona Inácia casou-se em 1649 com meu antepassado Fernão Vaz da Costa Doria. Bom, conto tudo isso para dizer que, mesmo assim, não acredito em hereditariedade de talento literário. Mas acho que adianta muito você crescer no meio de livros, sendo incentivado a ler, a procurar as coisas, as questões, perguntas e respostas, por você mesmo. Mamãe me mostrava, na estante de Vuvu, uma porção de livros em francês, e dizia, você tem que aprender francês para ler Zola. Coitada de mamãe, dreyfusarde feroz, ainda que tendo nascido depois da reabilitação de Dreyfus: nunca li Zola, mas li Proust.

(Papai, Gustavo Doria, foi crítico de teatro de O Globo no final dos anos 40 e durante boa parte dos 50. Amigo de Nelson Rodrigues, criticou-lhe Perdoa-me por me traíres, junto com Bárbara Heliodora e Henrique Oscar. Foi achincalhado pelo Nelson, e se desencantou com a crítica. Tinha um escritório de advocacia, marcas e patentes, com mamãe, e no escritório uma carteira com muitas das maiores marcas brasileiras, cujo registro e manutenção os dois acompanhavam. Quase faliram: foi no período da inflação do Juscelino; recusavam-se a aumentar os preços, porque seria atitude indigna para com os clientes. Uso extremado, absurdo — evito outros adjetivos — do noblesse oblige em que nos banhávamos todos. Morávamos numa casa de vila em Botafogo, que eles transformaram, quase, num atelier de artista. Como papai era crítico teatral muito respeitado, costumava receber em casa muita gente de companhias estrangeiras, que iam curtir o cocktail de camarão que mamãe fazia, em sauce rosée, e beber Veuve Clicquot, ainda de preço razoável naquele tempo. E, assim, conheci em minha casa, em vila de Botafogo, gente como Jean-Louis Barraut e Madeleine Renault, além de boa parte do teatro brasileiro. Diziam todos sobre a casa: parece Montmartre, e papai se deliciava.)

Adianta muito, adianta imenso conviver com gente que pensa e escreve. Um dia chego em Copacabana na casa de meus avós maternos, em 65 ou 66, com um livro de Borges na mão. Neco, meu primo, Prudente de Moraes, neto, já disse, está na varanda grande do primeiro andar; me vê, me chama. Pergunta, que livro é esse, Francisco Antonio? Mostro-lhe: Ficciones, de Borges. Pega, examina, fala: fomos muito amigos, nos correspondemos muito nos anos 20. Enquanto a gente fazia o movimento pela arte moderna aqui, eles faziam movimento semelhante na Argentina.

Abre o livro, lê um pouco, sinto o Neco melancólico, fecha o livro e me devolve.

Aqui em casa são também 20 mil volumes. Mas lembro num flash o que um historiador disse de outro parente, um anquilosado marquês florentino: cervello molto bizzarro, aveva stupenda librería, che lui vivente andò dispersa.

Vou ficar assim?

1968, IV: Quem é Wurlitzer?


— A onda agora é conhecer Wurlitzer!

Era fevereiro. Estava em casa de João Rui Medeiros, dono da José Álvaro Editor, um apartamento em Copacabana, na Praça Eugênio Jardim. Muita bebida, boas comidas, discussão furibunda entre estruturalistas e não-estruturalistas. Maior mistura de gentes: políticos, tipo Ciro Kurtz, que era deputado; jornalistas, como Fausto Wolff. Muita gente, uma discussão que já estava chegando no ponto da briga física. Até que alguém berra:

- A onda agora é conhecer Wurlitzer!

Wurlitzer, a onda intelectual de 1968? Porque havia isso, uma sucessão de ondas intelectuais, desde os anos 50 no Rio. Primeiro o existencialismo, e logo em seguida Sartre. Aí chegou, comecinhos dos 60, o marxismo através de Sartre, o marxismo da Critique de la Raison Dialectique. Depois, entrados os 60, uma guinada: a semiótica de Max Bense, que vai inspirar a Karlheinz Bergmiller a criação da ESDI, a Escola Superior de Desenho Industrial, na Lapa.

Aí, devagarinho, vai se aproximando a onda estruturalista, Lévi-Strauss (que, no início, pouca gente havia lido), a vertente psicanalítica de Jacques Lacan, o côté marxista de Althusser, Balibar, Badiou. 1967 foi o ano do estruturalismo: Jorge Zahar publica uma coletânea sobre o estruturalismo onde aparece um texto violentíssimo de Escobar, defendendo o marxismo à maneira de Althusser. Deste artigo de Escobar surge uma briga com Carpeaux, que se prolonga pelo ano todo.

E — no começo de 1968, um nome novo, anunciado ali: Wurlitzer. Na festa em casa de João Rui, a coisa pega fogo de novo, uns poucos defendendo Wurlitzer, dizendo maravilhas de Wurlitzer, os outros, a maioria, irritados, meio com cara de panaca, sem saber quem era, o que dizia Wurlitzer.

Era alemão? Perguntavam os que não sabiam de Wurlitzer — afinal, o alemão era uma barreira impossível de se ultrapassar; lia-se Sartre porque todo mundo, tout le monde et son père lia francês. Mas Heidegger... quem chegava lá? Só Carpeaux, Anatol Rosenfeld, Willy Lewin. Os Grandes Eruditos. E mais ninguém. Não, não, Wurlitzer era Uurlítzer, americano. A festa terminou sem que os ignorantes-de-quem-era-Wurlitzer soubessem muito mais sobre aquela nova onda.

Se bem me lembro, essa discussão sobre Wurlitzer virou até nota em coluna social, nos dias seguintes à festa.

Passa um tempo. Estou num barzinho na Sá Ferreira, perto da praia. Uma vitrola daquelas grandonas, jukebox, cheias de discos, rebrilhantes de luzes de tudo quanto é tipo, toca música sem parar. A toda hora vai alguém lá, mete umas fichas, e renova o estoque de música. Um amigo meu se levanta da mesa, me puxa pelo braço, e diz, vem ver a Wurlitzer.

Era A Wurlitzer? Era. Rebrilhando de luzes e cromados, bem no alto, a vitrola mostrava a marca: Wurlitzer.

Era esta A Wurlitzer da discussão em casa de João Rui, da nova onda de 1968...

1968, III: De Mao a Piao


Cherchez la femme. Começo com um lugar comum. Naquele comecinho de 68, janeiro, estava saindo com uma menina aluna de sociologia da PUC-RJ. Estava ficando razoavelmente conhecido, porque escrevia regularmente no Quarto Caderno do Correio da Manhã, um caderno de comentários políticos, iniciado em 1966, e que logo evoluiu no melhor suplemento cultural do Brasil — tipo estrela cadente; brilhou rápido em 67 e 68, e foi morto pelo Ato 5. Depois conto como fui parar lá.

A moça me convidou para ajudar num “grupo de estudos” da turma dela. Aspas necessárias: o nome que ela usava era grupo de estudos, e a maior parte dos que estavam lá eram seus colegas de PUC. Com duas ou três exceções, uma delas eu, e a outra um carinha bem diferente daquele povinho dourado zona sul do Rio. Logo logo descobri o que era o grupinho de estudos.

O ponto de reunião era uma casa perto da PUC, na Marquês de S. Vicente, na Gávea. Cercada de árvores e jardins, e tendo no fundo uma piscina imensa, bem azulzinha de azul piscina, e, do lado, um puxado, tipo bar da piscina, compridão, cheio de cadeiras e mesas. Era onde a gente se reunia. No fundo do jardim, muitas árvores, quase em continuidade com o parque da PUC.

Não estou fazendo caricatura: era assim mesmo.

Cheguei lá com a moça, já havia gente reunida. O tal rapaz que não era dos tipos dourados das praias do Rio me entrega dois textos mimeografados, e diz, vamos estudar isso e vamos discutir. Hoje em dia sumiram os mimeógrafos a álcool e a tinta; os a álcool imprimiam coisas em roxo, roxo-azulado, e deixavam nas coisas impressas um cheirinho gostoso de álcool de cana; os a tinta cheiravam mal, e imprimiam coisas numa tinta preta pegajosa, que sempre sujava a mão do operador do mimeógrafo e de quem lia a coisa impressa. (Os primeiros Carlos Zéfiros e assemelhados eram impressos em mimeógrafos a tinta, registro.) Peguei os textos: na folha de rosto do primeiro, Mao Tsé-tung, Sobre a Contradição. Na do segundo, Mao Tsé-tung, Sobre a prática.

Nos anos 50 circulou, com muita fanfarra e elogios, um texto de Stálin sobre linguística. Era coisa profunda, bem argumentada, e exibida sempre para mostrar as habilidades intelectuais do Uncle Joe, em contraste aos talentos muito restritos, com certeza, de Eisenhower. Era um texto interessante, mas com certeza não foi escrito por Stálin: foi escrito por um grande linguista soviético, não lembro agora quem, e assinado pelo Joe himself. Mas os textos de Mao com certeza são dele, e são muito, muito ruins. São um bestialógico sem pé nem cabeça, coleção de trivialidades e lugares comuns sobre contradições na natureza. Pensa bem: contradição na natureza é um conceito vago — os sexos são contraditórios? O azul contradiz o vermelho? Ou será oposição ao amarelo? Em cima de coisas vagas assim, você monta qualqer tipo de teorização com esqueminhas dialéticos.

O outro texto, Sobre a prática, cheirava a auto-ajuda revolucionária. Lixo, também.

No fundo, epifenômenos da famigerada dialética da natureza de Engels, teorização que não tem nada a ver com o que Marx pensou e estudou. Marx é genial; Engels não lhe chega aos pés.

No domingo seguinte publiquei, no Quarto Caderno, um artigo cujo título era: “Sobre os maus textos sagrados.” Trocadilho que irritou muita gente, mas ao qual não resisti. Comecei com uma frase assim: “Sobre a contradição” só não cai em pedaços porque os grampos da lombada são muito firmes.” E fiz uma análise com certeza maldosamente destrutiva daqueles dois textos de Mao. Usei, na minha crítica, muita coisa que sabia, e também idéias tomadas num livro que havia lido uns tempos antes, The Tyranny of Concepts, de Gordon Leff (Merlin, Londres, 1961). E fui, lampeiro e feliz, na terça-feira, para a reunião do grupo de estudos.

Todo mundo tinha lido o que havia escrito. A raiva, no entanto, estava concentrada no orientador do grupo — afinal, melei o jogo dele. Acabei sendo convidado a sair; o rapaz disse de mim que eu tinha desvios ideológicos anárquicos... Saí do grupo e deixei de ver a minha candidata a socióloga.

Não é uma caricatura; é o que aconteceu. Um grupo de estudos de textos de esquerda, bem de esquerda, que se reunia junto à piscina de uma casa muito bonita na Marquês de S. Vicente. Radical chic ao estilo americano? Uma célula de grupelhos ultra num ambiente de alta burguesia? Pode ser. Conto só como foi.

E' o segundo episódio que marcou o começo de 1968, para mim.

Depois me redimi os com dialetas, duas vezes. Em março ou abril, escrevi artigos sobre um livro que Jorge Zahar havia publicado, Dialektik ohne Dogma?, Dialética sem Dogma, na edição brasileira. Trata-se de um texto sobre filosofia da ciência, teoria dos fundamentos da química e da mecânica quântica (costumo dizer que quem fala física quântica não conhece mecânica quântica). Lembro que até consultei a Mécanique Quantique, de Landau e Lifschitz, para fazer minha resenha. Foi muito comentada; o livro de Havemann era uma tentativa de sair do esquematismo dialético barato, e tinha idéias bastante interessantes — e com certeza ia botar Engels se ralando de inveja.

E — como é notório, trabalho há mais de vinte anos com Newton da Costa, pai das lógicas paraconsistentes. Inventadas, entre outras coisas, como uma tentativa de formalizar a dialética de Hegel. Temos junto uns trinta artigos publicados, a maior parte sobre lógica e fundamentos da ciência.

Na ilustração, a capa do livro de Gordon Leff. Disseram que tinha inventado o autor para justificar o que chamaram de “minhas imbecilidades.” Pois está aí o livro. Não foi outro Wurlitzer.

E sobre quem foi Wurlitzer, deixo para o próximo post.

domingo, 27 de janeiro de 2008

1968, II

O ano começou em andante moderato. Lembro de dois episódios de janeiro. Conto agora o primeiro desses episódios. Logo ao início do ano, Eduardo Portella me convida para uma reunião no Colégio do Brasil, para discutirmos dois números especiais de Tempo Brasileiro, uma das duas revistas de cultura que circulavam no Rio — a outra era Cadernos Brasileiros.

O Colégio do Brasil ficava ali no Largo do Machado, numa casa que abrigava também a editora de Eduardo; no dia a dia, quem cuidava das coisas era seu irmão Franco. Era uma casa dos anos 20 do século passado, com um pórtico, um pequeno hall de entrada, e, à direita, um auditório para umas cinquenta pessoas. Foi num sábado de tarde: cheguei, me apresentei e fui apresentado aos outros colaboradores dos números especiais da revista, seu editor, Chaim Samuel Katz, o Jaime; Sérgio Augusto, que já conhecia como crítico de cinema; Eduardo; Franco; algumas outras pessoas.

Tempo Brasileiro havia editado em 1967 um número sobre estruturalismo — a onda do estruturalismo viera em 1966 da França, e provocou uma brigalhada daquelas na intelligentzia (existia sim, a intelligentzia) do Rio e de São Paulo. Mas foi uma briga interna entre correntes marxistas: havia os que achavam que marxismo e estruturalismo eram compatíveis, e que o estruturalismo aprimorava o marxismo (essa briga vinha da França: um filósofo que depois se suicidou, Lucien Sebag, havia publicado em 1964 Marxisme et Structuralisme). Outros diziam que o estruturalismo tirava o conteúdo humanista do marxismo. E vinha blá-blá-blá que não acabava mais, de um lado e do outro.

Havia também os estruturalistas indiferentes ao marxismo, como Abraham Moles, que tentava formular uma teoria geral das sociedades com base na (assim chamada) teoria da comunicação de Shannon, hoje melhor conhecida como teoria da informação. Ou seja, tiroteio na zona.

Naquele sábado de janeiro de 1968, estava entrando nessa briga toda.

Combinamos ali duas coisas: a revista sobre estruturalismo, um best-seller, ia ser reeditada com um apêndice, para o qual eu escreveria um artigo. Escrevi: sobre a estrutura dos romances de ficção científica. (Disse que reproduziam um arquétipo, o mito salvacionista, o mito da criança divina, estudado por Jung. E misturei alegremente Jung com Lévi-Strauss, irritando assim todas as ortodoxias, da psicanálise anti-Jung e pró-Lacan à turma do marxismo mais tradicional.) Combinamos também fazer uma revista sobre comunicação. Ao fim, um vocabulário de comunicação e cultura de massa. Deste vocabulário nascerá, em 1971, meu segundo livro, com o Chaim, o Jaime, e Lula Costa Lima, o Dicionário Crítico de Comunicação.

Um comentário à parte: o Dicionário, escrito em 70 e 71, ia sair por uma terceira editora. Estava com os originais debaixo do braço, na cidade, no centro do Rio, quando encontro Fausto Cunha — acho que foi descendo do ônibus, acho que quase dei um encontrão no Fausto. Foi ali em frente ao Bob's perto da Maison de France. Vamos tomar um milk-shake, Fausto me pergunta sobre aqueles originais, digo o que é, e ele me faz ir direto à Paz e Terra, que naquele tempo ficava no Edifício Avenida Central, onde Moacyr Félix, diretor da editora, e o Fausto, me convencem a negociar o livro com a Paz e Terra. Saiu com o selo do Instituto Nacional do Livro, isso um livro cheio de verbetes marxistas, no tempo do general Médici (nada a ver com a família florentina histórica, deixo claro). Demos em maio de 1971 uma festa de arromba, subsidiada por uma agência de publicidade, para comemorar o lançamento do livro.

Volto a 1968.

Um mês depois de nossa reunião, o CCC, Comando de Caça aos Comunistas, joga uma bomba no Colégio do Brasil. Alguém comentou comigo então: ser intelectual é um perigo nessa terra. Bom, continua sendo.

1968, I

Pedro, meu filho, me perguntou hoje se, quando 68 terminou, a gente sabia que havia sido um ano especial. Com certeza: todo mundo terminou o ano desencantado, desesperançado — os milicos haviam baixado o Ato 5 em 13 de dezembro, uma sexta-feira. Estávamos de crista baixa, mas sabíamos que o ano tinha sido um ano diferentão. Cheio de novidades que, a gente pensava, tinham sido fogo de palha: afinal de Gaulle terminava 68 todo poderoso na França, e os ditadores de plantão no Brasil tinham conseguido reimplantar a ditadura, com o golpe contra o Costa e Silva porque o Ato 5 foi, sim, um golpe contra o Costa.

Vou contar tudo, aos poucos. Festas, que foram muitas, como o Baile da Baronesa, que o Jaguar organizou, ou a despedida de Marcito, em casa de Heloisa Buarque de Hollanda, ou a festa que o Smil deu em minha homenagem em novembro, na casa dele — teve até strip tease de uma atriz muito manjada. Vou contar sobre a passeata dos 100 mil. Vou contar sobre o clima de cidade ocupada que vivemos, no Rio, em março e abril, com caminhões da PM passando a toda, sirene aberta, pelas ruas da cidade, apontando os fuzis para as pessoas na rua. Vou contar sobre aqueles com quem convivi: Paulo Francis, que me levou para o Correio da Manhã, o mais importante jornal do Rio, na época, em 1967, e me botou na equipe permanente do “Quarto Caderno,” o suplemento intelectual — tinha disso — mais lido do Brasil; Otto Maria Carpeaux, Antonio Houaiss, todos da redação da Grande Enciclopédia Delta-Larousse; amigos que fiz naquele tempo, como Chaim Samuel Katz e Luiz Costa Lima.

Vou contar tudo isso.

Mas começo com a noite do Ato 5.

Cheguei do trabalho, trabalhava na Editora Delta, era assessor econômico para projetos industriais, jantei rápido. O clima no centro do Rio estava super-pesado; rumores que tinha gente sendo presa, deputados dizendo que o “governo ia reagir” contra a derrota que sofrera no pedido de licença para processar o Marcito. Papai tinha comprado uma tv pequena (era 68: portanto, tv em preto-e-branco) onde assistíamos ao jornal. Bate 8 e meia. Entra no ar o Gaminha, ministro da justiça, com as desculpas esfarrapadas habituais do governo, e aí aparece o Alberto Cury, locutor oficial, vomitando sobre nós o horror ditatorial do Ato 5.

Na hora me senti meio anestesiado. Pensei, “vem de novo a mesma coisa de 64, 65,” dos Atos 1 e 2. Não pressenti que ia ser pior.

Estava anestesiado porque tinha um compromisso, um programinha ótimo, para a noite. Um amigo, o Nando, me havia convidado para sair com duas colegas dele, psicólogas e irmãs; estava na verdade com a cabeça no programa que íamos fazer. Com ou sem Ato 5, fomos ao Bilboquet, uma boate que ficava na N. S. de Copacabana quase esquina de Princesa Isabel. Cheia de luz negra, efeitos psicodélicos, coisa que era novidade nos anos 60. Bebi, dancei, combinei novas dates com uma das moças, e adormeci de madrugada com o Ato 5 nas costas e na memória, mas sem perceber a extensão da coisa, do desastre.

Só despertei quando ia para a praia no sábado, 11 horas, e vi as manchetes do Jornal do Brasil: “Ontem foi o dia dos tolos.” A previsão do tempo: “tempo negro, temperatura sufocante; o ar está irrespirável. Mínima: 5 graus em Brasília...”

Os Costas, III: a linha Costa Doria


9. AFONSO DA COSTA
N. 1433-35? Alcaide-mor de Lagos em 1452, doação confirmada por D. João II em 3.1.1486. Atestado como alcaide-mor de Lagos, em 11.4.1496, quando é referido como cavaleiro, e em 1514 como almoxarife de Silves. Pai de:

10. DR. CRISTÓVÃO DA COSTA
N.c. 1485. Bacharel em leis (Salamanca) em 1512, Doutor antes de 1520, quando já aparece, em 1.4.1520, como desembargador da Relação de Lisboa, de onde será chanceler. Foi reitor da Universidade em 1526/7. Casou em 1520 (e recebeu de dote do rei 50 contos em documento no qual é dito filho “do alcaide-mor de Lagos”) com Guiomar Caminha, filha do desembargador Dr. Fernão Vaz Caminha — este muito provavelmente filho de Rui Vaz de Caminha, meio-irmão do escriba da frota de Cabral, Pero Vaz de Caminha, e de sua mulher Catarina Fernandes, filha legitimada de Fernão Vaz, clérigo de missa, e de Constança Afonso (donde o nome Fernão Vaz, de personagens destes). Pais de:

11. FERNÃO VAZ DA COSTA
N. pouco depois de 1520 em Lisboa. Veio para o Brasil comandando uma das naus da frota que para cá trouxe o Dr. Tomé de Sousa. Em 1557 casou-se com a viúva genovesa Clemenza Doria, chegada ao Brasil em 1555 e logo desposada com Sebastião Ferreira, que morre em 1556 no naufrágio da nau N. S. da Ajuda, que levava a Portugal o bispo D. Pero Fernandes Sardinha. Era filha de Aleramo Doria, banqueiro genovês a serviço de D. João III, e neta de Francesco Doria e de Gironima Centurione. (Ver os primeiros posts desse blog para a genealogia de Clemenza Doria.) P.d.:

12. CRISTÓVÃO DA COSTA, ou CRISTÓVÃO DA COSTA DORIA
Batizado na Sé de Salvador em 17.7.1560, † após 1606, segundo filho de Clemenza Doria e de Fernão Vaz da Costa, c.c. D. Maria de Meneses, filha de Jerônimo Moniz Barreto de Meneses e de sua primeira mulher D. Mécia Lobo de Mendonça. Filha:

13. D. ANTONIA DE MENESES
Bat. 1606 em Salvador, † após 1648. C. em 17.9.1631 c. Antonio Moreira de Gamboa, n. e † na Bahia, n.c. 1590 e † após 1648. Filho de Martim Afonso Moreira, n.c. 1550 em Setúbal (Portugal) e † depois de 1622 em Salvador, quando vendeu aos frades franciscanos terras para a construção de seu convento. Martim Afonso Moreira seria fidalgo da casa real; chegou ao Brasil em 1567, e aqui se casa com Joana de Gamboa, de quem era filho Antonio Moreira de Gamboa. Depois c.c. com Luiza Ferreira Feio, também c.g. Martim Afonso Moreira era filho de um Antonio Moreira, dos Moreiras de Celorico de Basto, talvez Antonio Moreira de Áltero. Filho que segue, este:

14. MARTIM AFONSO DE MENDONÇA
Fidalgo da casa real, irmão da Santa Casa da Misericórdia de Salvador em 7.12.1672; n.c. 1632. C.(1) c. D. Inês de Carvalho Pinheiro, s.g. C. (2) c. D. Brites Soares, filha de Sebastião Soares, c.g. Em 10.9.1665, no Monte Recôncavo, c.(3) c. D. Joana Barbosa, filha de Miguel Nunes Peixoto e de s.m. Concórdia Barbosa. Do terceiro leito:

15. GONÇALO BARBOSA DE MENDONÇA
N.c. 1675, † 1737, capitão de milícias, c. 27.4.1716 na matriz do Socorro c. D. Antonia de Aragão Pereira, filha de Alberto da Silveira de Gusmão e de s.m. D. Isabel de Aragão, descendente esta do Caramuru. Filho:

16. CRISTÓVÃO DA COSTA BARBOSA
(1731-6.5.1809). Sr. do engenho “Ladeira” em São Francisco do Conde. C.c. a prima D. Antonia Luiza de Vasconcelos Doria (1744-1825), filha do Cel. Manuel da Rocha Doria (filho de Miguel Moniz Barreto, filho de Martim Afonso supra, e de D. Angela da Rocha), e de D. Ana Maria de Vasconcelos. P.d.:

17. MANUEL JOAQUIM DA COSTA DORIA
Boiadeiro, acha-se documentado em S. Francisco do Conde e depois em Santo Amaro (BA). N.c. 1775 em S. Fco. do Conde; † após 1843. C. (c. 1808) c. D. Teresa Sebastiana, antes D. Teresa Mariana de Meneses Doria, sua prima co-irmã, n. c. 1785, filha do Cel. José Luiz da Rocha Doria e de sua segunda mulher e prima D. Francisca Xavier de Menezes Doria. Dele e de seu irmão primogênito José da Costa Doria descendem os Costas Dorias de hoje. Filho:

18. JOSÉ DA COSTA DORIA
N. 1809 no Recôncavo, † 1871. Passou a Itapicuru (BA) e depois a Estância (SE) e c. em Itapicuru (1830) c. D. Helena Bernardina Mendes de Vasconcellos, ou Souza Mendonça, filha de Antonio Ponciano de Souza Mendonça, tabelião em Itapicuru. José da Costa Doria foi dado como “professor” em 1833, em Itapicuru, e como “capitão” em 1857 em Aracaju (SE). Filho:

19. DIOCLECIANO DA COSTA DORIA
N. Itapicuru em 17.11.1841; † Rio, 2.8.1920, médico (Bahia, 1869), deputado provincial por Sergipe (1880), e em seguida diretor de higiene e instrução públicas em Santa Catarina, durante a presidência Rodrigues Chaves. Fixou-se, em fins dos anos 80 do século XIX, no Rio de Janeiro, deixando a carreira política, e para o Rio atraiu muitos de seus parentes baianos. A lista dos presentes a seu enterro, em agosto de 1920, é um Who’s Who da sociedade do tempo, o que demonstrava seu prestígio como clínico e personalidade pública. C. em 15.1.1870 em Estância (SE) com D. Dária de Azevedo Moutinho, filha de Antonio da Silva Moutinho e de D. Turíbia Cassimira de Azevedo, filha esta do cônego Antonio Luiz de Azevedo, † 1848, sr. do engenho “Palmeira,” em Lagarto (SE), e de sua common-law wife D. Jacinta Clotildes do Amor Divino. (Notemos que D. Jacinta Clotildes era negra, e provavelmente ex-escrava ou filha já liberta de escravos.) Pais de:

20. RAUL MOITINHO DA COSTA DORIA
(Estância (SE), 18.10.1871-Rio, 3.9.1948). Em 27.5.1899 c.c. D. Inesilla do Valle e Accioli de Vasconcellos, filha do Tte-Cel. Francisco de Barros e Accioli de Vasconcellos e de s.m. D. Maria do Carmo do Valle; n.p. do médico Dr. José de Barros Accioli Pimentel e de s.m. D. Ana Carlota de Albuquerque Mello; n.m. do fidalgo cavaleiro da casa real João Maria do Valle e de s.m. D. Antonia Brandina de Castro Pessoa. P.d.:

21. GUSTAVO ALBERTO ACCIOLI DORIA
N. no Rio e † na mesma cidade, 17.10.1910 — 10.12.1979, crítico de teatro, advogado, patrono da “rua Gustavo Doria” na Zona Oeste do Rio, c.c. D. Silvia Cresta Mendes de Moraes (n. e † no Rio, 19.1.1913 — 4.12.1969), filha de Justo Rangel Mendes de Moraes e de s.m. D. Herminia de Mattos Cresta. C.g.

Na ilustração as armas dos Costas Dorias: partido; I, de Costas. II, de Dorias. Elmo de prata aberto e guarnecido de ouro. Paquife das cores e metais das armas. Timbre, usam o dos Dorias, a águia das armas, nascente.

Os Costas, II: Soeiro da Costa


8. SOEIRO DA COSTA, um dos Doze de Inglaterra.
Não há prova de sua filiação; está aqui por ser algarvio, ter um filho Afonso, e descender de outro Soeiro. É um herói da cavalaria tarda. Conta-se que, tendo sido doze damas inglesas da melhor nobreza ofendidas em sua honra por doze fidalgos da terra, apelaram aquelas a seu rei, para que designasse campeões que por elas se batessem; mas nenhum campeão que lutasse pelas damas foi encontrado na Inglaterra. Lembrou-se então o rei que portugueses batiam-se com bravura e destemor, e apelou a cavaleiros de Portugal, para que viessem lutar pelas damas ofendidas. Doze cavaleiros lusos enfrentaram então em justas os doze ingleses ofensores, e venceram-nos, assim lavando a honra das damas inglesas. Esses doze cavaleiros ficaram desde então conhecidos como os Doze de Inglaterra. Os nomes desses cavaleiros - na verdade treze, em número - são conhecidos, e são, todos, personagens historicamente atestados: Alvaro Vaz de Almada (depois Conde de Avranches); Alvaro Gonçalves Coutinho, dito “o grão Magriço”; Joào Fernandes Pacheco e Lopo Fernandes Pacheco (filhos de Diogo Lopes Pacheco, um dos assassinos de D. Inês de Castro); Alvaro Mendes Cerveira e Rui Mendes Cerveira, também irmãos; Joào Pereira Agostim; Soeiro da Costa; Luis Gonçalves Malafaia; Martim Lopes de Azevedo; Pedro Homem da Costa; Rui Gomes da Silva e Vasco Anes da Costa, dito “Corte Real.” Destes nos vai interessar Soeiro da Costa. Assim, diz o cronista Gomes Eanes de Zurara (1410-1474) na sua Crônica dos feitos da Guiné, “Ca hera hi Sueiro da Costa, alcaide daquella villa de Lagos, o qual era homem nobre e fidalgo, criado de moco pequeno na camara delrrey dom Eduarte [D. Duarte] e que se acertava de seer em muy grandes fectos; ca elle fora na batalha de Monvedro, com elrrey dom Fernando dAragom contra os de Vallenca, e assy no cerco de Vallaguer, em que fezerom muy grandes cousas, e foe com elrrey Lancaraao [Ladislau], quando barrejou a cidade de Roma; e andou com elrrey Luis de Proenca [de Provença], em toda a sua guerra. E esteve na batalha da Ajancout [Azincourt], que foe hua muy grande e poderosa batalha entre elrrey de Franca e elrrey de Jngraterra. Efora ja na batalha de Vallamont, cabo de Caaes, com o conde estabre de Franca contra oduque dOssestre, e na batalha de Monseguro [Montségur], em que era o conde de Fooes [Foix] e o conde dArminhaque [d’Armagnac], e na tomada de Samsooes [Soissons] e no decerco de Ras [Rheims?] e assy no decerco de Cepta [Ceuta] Nas quaaes cousas sempre provou, coomo muy vallente homem darmas.” (Algumas datas, para se precisar a cronologia: em 1411 acontece a batalha entre Luiz de Anjou, rei de Provença e Ladislau de Durazzo, rei de Napoles; em 27.2.1412 ocorre a batalha de Murviedro; de 1.8.1413 a 31.10.1413, o cerco de Balaguer; entre 1412 e 1413, a batalha de Montségur; em 1414, o cerco de Roma; em 25.10.1415, a batalha de Azincourt; e em 1418-1419, o cerco de Ceuta.)

Podemos reconstituir a biografia de Soeiro da Costa, em parte sobre conjecturas, em parte sobre o testemunho de crônicas como a de Zurara, e em parte sobre documentos. Soeiro da Costa terá nascido c. 1390, muito provavelmente em Tavira, se seu avô (pai?) tiver sido - como se discutiu já - Afonso Lopes da Costa, que recebeu em 1384, do Mestre de Aviz, o prazo de uma azenha em Tavira (Afonso Lopes da Costa e mulher são citados como proprietários em Lagos em 1401, donde o supor eu que era este o pai de Soeiro da Costa, que tem um filho Afonso). Em seguida vemos, já com vinte anos ou quase, Soeiro da Costa batendo-se nos principais campos de batalhas de começos do século XV, como o fizeram também Alvaro Vaz de Almada e o “grão Magriço.” Nos documentos, Soeiro da Costa aparece pela primeira vez em 8.5.1433, quando D. Duarte nomeia-o para o cargo de almoxarife de Lagos no Algarve, dizendo-o “seu criado.” Em 18.5.1439 D. Afonso V chama-o alcaide em Lagos no ato em que lhe concede uma tença anual de 200 000 libras. Está como alcaide-mor e almoxarife até 1450, embora seu genro Lançarote da Ilha apareça como almoxarife em 11.4.1443. Soeiro da Costa renuncia à alcaidaria-mor de Lagos em 1452, e em 5.2.1452, a pedido do infante D. Henrique, D. Afonso V nomeia Afonso da Costa, filho de Soeiro, para o posto de alcaide-mor de Lagos (em 3.1.1486 D. João II confirma Afonso da Costa como alcaide-mor de Lagos). Ainda outra notícia, de verbete enciclopédico: “Tantas ações de cavalaria já o faziam célebre na Europa, e estando bem firmados os créditos do infante D. Henrique pelos sucessos dos seus descobrimentos, a cidade de Lagos, contra as murmurações dos críticos, quis fazer novo armamento no ano de 1445, para destruir a ilha de Arguim, que muitos prejuízos causava, e entregou juntas 14 velas ao capitão Lançarote da Ilha (ou de Freitas), que fora criado do infante D. Henrique, no foro de seu moço da câmara, e era almoxarife de Lagos, por mercê do mesmo infante. Soeiro da Costa, apesar de já ter certa idade mas que não afrouxara como militar aguerrido, ofereceu-se generosamente, e lhe foi dada a capitania de uma delas; as quais, todas reunidas a mais 12, com que os de Lisboa e da ilha da Madeira, nesta facção mais de honra que de interesse, nada quiseram ceder aos de Lagos, saíram daquele porto a 10.8.1445. Separadas as caravelas por um forte temporal que sobreveio, cada uma com incerto rumo buscava sítio diverso ao longo da costa; mas como prudentemente, Lançarote havia determinado que, no caso de tempestade, todas demandariam a ilha das Graças para se reunirem, e ali se foram juntando umas às outras, e chegadas depois a Arguim, entraram na ilha afugentando todos os habitantes, podendo apenas lançar mão a 12 homens, que destemidos se arriscaram com as armas na mão a defender-se, combatendo com os nossos, dispostos a morrerem e não a se renderem. Nesta ação mostrou Soeiro da Costa qual seria o seu esforço em lances mais arriscados, e não contente com a vitória, com a espada tinta em sangue infiel, como quem prezava mais a religião que o valor militar, pediu que o armassem cavaleiro para de novo se alistar naquela conquista do Evangelho, e havendo recusado outras vezes esta honra na Europa e de mãos reais, agora a requeria em memoria daquele triunfo, aceitando-a da mão de Álvaro de Freitas, comendador de Aljezur, tendo a glória de o acompanhar o capitão Diniz Eanes de Gram, escudeiro do infante D. Pedro e sobrinho de Gonçalo Pacheco, que fora anteriormente criado do infante D. Henrique, e então já aposentado no oficio de tesoureiro--mor da Casa de Ceuta, que recebeu conjuntamente a mesma dignidade de cavaleiro. Lançarote da Ilha seguiu viagem, ambicioso de maior gloria, e Soeiro da Costa retirou-se para o reino, acometendo de passagem o Cabo Branco e a ilha de Tider, recolhendo-se a Lagos vitorioso, e com muitas presas que trazia.

Soeiro da Costa foi casado com Mécia Simões, filha de Gil Simões, alcaide-mor de Estoi (também no Algarve), de quem teve uma filha, que casou com o capitão Lançarote.” Soeiro da Costa morre em 1472; já estava falecido de pouco em 14.8.1472, pois a partir de janeiro de 1471 ainda recebia, por mercê de D. Afonso V, uma tença de 5 mil reais de prata. Fora casado, como ficou dito, com Mécia Simões, ainda viva no tempo de D. João II, filha de Gil Simões que tinha a alcaidaria-mor de Estói, junto a Faro. Pais de:

9. AFONSO DA COSTA.
Segue no próximo post.

(A imagem é uma silhueta de Soeiro da Costa, “pescada” na rede.)

Os Costas, I


Bom, se você acredita em linhas muuuuuuiiito extensas, esta é a genealogia dos Costas Dorias, em sua (quase) varonia. Até o século XIV, a linha é feita emendando-se as gerações pelos patronímicos e pelas funções análogas exercidas pelos personagens (é uma linha de alcaides-mores de Évora). Depois de Soeiro da Costa, a linha se torna segura — tão segura quanto é possível uma linha documental, claro.

Se Gonçalo da Costa, abaixo, for filho de Mem Gonçalves, fundador do mosteiro de Mancelos em 1110, então seria neto de Gonçalo Pais, e bisneto de Paio Cavaleiro, ambos naturais da Galiza — se acreditarmos nas notas às margens do Nobiliário do Conde D. Pedro.

1. GONÇALO DA COSTA
Sr. da Quinta da Costa em Mancelos, perto de Amarante; o nome vinha-lhe de uma torre ao pé de uma capela de N. S. da Costa, no mesmo local. Atesta-se primeiro em 1139 numa doação de D. Afonso Henriques a Mendo Eriz, de uma quinta em Creixomil; em seguida, numa escritura de 1154 que assinou com D. Afonso Henriques e com outros fidalgos, na qual faz-se doação do couto de Semide. Assina ainda mais outro documento em 1185 em Coimbra. Pai de, segundo os nobiliários:

2. MEM GONÇALVES DA COSTA
Viveu nos fins do século XII e começos do XIII; s.m.n. Pai de:

3. MARTIM MENDES DA COSTA
Cavaleiro, 1ºalcaide-mor de Évora nesta família, 1246-1257, † após 17.1.1265. Pai de:

4. SOEIRO MARTINS DA COSTA
N. em meados do século XIII. S.m.n.

5. AFONSO SOARES DA COSTA
Viveu ao tempo de D. Diniz (começos do século XIV). Irmão de Pedro Soares da Costa, alceide-mor de Évora em 25.4.1279, antes alcaide-mor de Beja em 1260 (Soveral acha que era filho de Pedro, e não seu irmão, acrescento. Pai de:

6. LOPO AFONSO DA COSTA
Viveu no século XIV; juiz de Tavira no Algarve em 1358, † após 1372, quando, em 23.4 recebeu uma azenha (doada por D. Fernando, de quem era vassalo) que pertencera a seu sogro. C.c. uma filha de João Galvão, cavaleiro algarvio, neta de Pedro Galvão, mestre de letras que vivia no tempo de D. Diniz.

7. AFONSO LOPES DA COSTA
A 21.2.1384 teve do Mestre de Aviz o prazo de uma azenha em Tavira. C.c. Margarida Annes: a 26.4.1401 num aforamento em Lagos são mencionados ambos, talvez ††. Pai de:

8. SOEIRO DA COSTA (ver em seguida)

Manuel Soveral acha que Soeiro da Costa era filho de Paio Afonso da Costa, personagem não documentado, e neto de Afonso Lopes da Costa.

Na ilustração, armas dos Costas, usadas por esta família e reiteradas numa carta d'armas de começos do século XVII: de vermelho, com seis costas de prata, 3 e 3, firmadas nos flancos do escudo. Elmo de prata aberto e guarnecido de ouro; paquife de prata e vermelho; e por timbre, duas costas das armas passadas em aspa e atadas com um torçal sanguinho.

O timbre não aparece, no desenho de João du Cros para o Livro do Armeiro-Mor, de 1509. Note-se que as armas exibem, de forma estilizada, uma caixa torácica esfolada, com as costelas brancas sobre a musculatura sangrenta. São, de modo agressivo, armas falantes.

sábado, 19 de janeiro de 2008

Mamãe, 95 anos hoje

Mamãe faria 95 anos hoje. Depois posto algumas lembranças dela.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Vovô, 14 de janeiro de 1883


Vovô nasceu em Rio Grande, RS, em 14 de janeiro de 1883, e morreu no Rio no começo da tarde de uma terça-feira, 12 de março de 1968, na sua casa de Rainha Elisabeth no. 129.

Era Justo Rangel Mendes de Moraes, filho do marechal Dr. Luiz Mendes de Moraes (preferia usar o título de Doutor à patente militar), ministro da guerra em 1909, e de D. Cecilia Rangel Mendes de Moraes, de solteira Cecilia Ferreira Rangel, Mme la Maréchale Mendes de Moraes.

Depois conto mais a respeito dele. Era meu padrinho. Durante muito tempo chameio Vovô de Vovô Dindinho, porque era meu padrinho (minha madrinha foi Conceição, irmã de papai). Fui batizado na igreja de N. S. da Paz, em 14 de janeiro de 1946.

(O retrato é de c. 1935.)

sábado, 12 de janeiro de 2008

Cavalcantis.

Quem colonizou o Brasil? Segundo um mito corrente no qual muitos acreditam, Portugal mandou para cá, em grande maioria, ladrões e prostitutas; descenderíamos todos desses damnés de la terre. Mas é falso. As listas de funcionários que serviam no Brasil, os censos, os atos notariais, tudo isso existe aqui desde meados do século XVI. E vemos nessas listas que quem veio para cá era gente comum: artífices, militares, alguns agricultores, nos séculos XVI e XVII; muitos camponeses e comerciantes interessados em fazer fortuna no ultramar depois do século XVIII. No grosso, gente com algumas posses e algum status já conquistado.

E uma pequena elite, que é inclusive citada nos nobiliários portugueses, como a Pedatura Lusitana, de Alão de Moraes, e o Nobiliário de Famílias de Portugal, de Felgueyras Gayo. Gente com status nobre e, nalguns casos notórios, com proximidade à alta nobreza e à corte dos Avizes, isso no século XVI. Dou alguns exemplos:

— Primeiro cito, se me permitem, minha ancestral Clemenza Doria. Genovesa, filha bastarda de um banqueiro, Aleramo Doria, com grandes negócios junto à corte portuguesa, este consegue que a filha seja educada como pupila — criada — da rainha de Portugal, D. Catarina. A rainha manda Clemenza, junto com outra moça nobre, Catarina da Cruz ou Catarina de Almeida, também sua criada, para o Brasil, em dezembro de 1554. Dotadas ambas com cargos públicos na colônia para os futuros maridos, porque seu destino era o de casarem e povoarem o Brasil.

O dote ia além dos cargos que traziam para o Brasil, para seus maridos. A rainha supervisiona pessoalmente o rol de roupas e alfaias com que vêm para a terra recém-descoberta. E com as duas moças, Clemenza e Catarina, a coroa portuguesa gasta aí, em roupas e equipagens, mais de 70 mil reis. Quase tanto quanto os 80 mil reis que, pela mesma época, o pai de Clemenza, Aleramo Doria, recebe anualmente de juros numa letra sacada contra a coroa portuguesa. Doze vezes o teto dos valores sobre os quais podia julgar um juiz ordinário no Brasil, no século XVI. Muito dinheiro, portanto.

— Seu segundo marido, Fernão Vaz da Costa. Bisneto do navegador, cavaleiro andante semi-lendário dos Doze de Inglaterra, Soeiro da Costa, e filho, Fernão Vaz, do Dr. Cristóvão da Costa, chanceler da relação portuguesa — presidente do supremo tribunal — e reitor da universidade lusa, Fernão Vaz larga um morgadio e prebendas mais em Portugal, e se atira para o Brasil, onde morre entre 1567 e 1568, ou de doença tropical, ou de conflito com os índios, ou talvez num naufrágio.

— Terceiro personagem, Simone Acciaioli, ou Simão Achioli. Fixado na ilha da Madeira desde 1512, ao menos, é florentino como Filippo Cavalcanti, de quem vou falar com mais cuidado. Personagem discreto, embora comerciante rico, Simone Acciaioli foi fundador de um morgadio que persistiu, na Madeira, durante mais de dois séculos, e era também primo dos Médicis do ramo dos grãos-duques, sobrinho de vários dos Duques de Atenas da família dos Acciaiolis, e parente perto de frei Zanobi Acciaioli, bibliotecário do Vaticano em começos do século XVI, humanista, autor publicado pela casa editorial de Teobaldo Manucci em Veneza, ou seja, um editado de Aldus Manuntius.

— Ainda cito alguns que nem são italianos, nem portugueses. Como os primos Sebald Linz von Dorndorf e Christoph Linz, patrícios de Augsburg, banqueiros muito ricos, privados do imperador da Alemanha, Maximiliano II de Habsburgo — e colonizadores do Brasil, desbravadores de Pernambuco. E “Gaspar Wanderley,” ou Caspar von Neuhof, gennant Ley, ou ainda Caspar von Neuhof von der Leyen, da pequena nobreza do Brandemburgo, militar ligado a Maurício de Nassau, que passou dez anos no Brasil e aqui deixou quatro filhos.

Sobre essa gente faço perguntas que não sei como responder. A primeira delas: muitos desses personagens deixaram para trás fortuna e carreira na Europa, e se fixaram no Brasil. Que fascínio, que poder de atração tinha esta nossa terra, para fazer com que gentes com bens e perspectivas no lugar onde nasceram, deixassem tudo para fazer uma vida nova no Brasil?

Depois: por que, com colonizadores notáveis, de tal qualidade, chegamos ao Brasil de hoje com tanto pessimismo? Essa gente se perdeu? Foi engolida pela selva selvaggia dos trópicos? Embruteceu-se? Por que, apesar de termos tido entre nossos colonizadores, no século XVI, gente ligada aos centros de poder na Europa, nos vemos hoje como um país colonizado por degredados, ladrões e putas — e eternamente estigmatizado, inferiorizado?

Centro-me agora na história de um desses personagens, Filippo Cavalcanti, negociante florentino.


Filippo Cavalcanti.

Os Cavalcantis de Filippo Cavalcanti são patrícios florentinos, de fato. Não tem dúvida quanto a isso. Vou transcrever sua certidão de nobreza, mas primeiro dou-lhes a versão do latinório; se quiserem saber onde se lê também o facsímile, lembro que foi publicado por mim alhures :

Cosimus Medices Dei Gratia Florentiae et Senarum Dux II. Universis et singulis ad quorum manus presentes advenerint litere, salutem et omnem prosperitatem etc. Familia Cavalcantum in hac nostra Florentina civitate, pariter et Familia Mannellorum singulari nobilitate ac splendore refulgent, ex quibus multi hactemus prodiere viri de Nobis et nostris progenitoribus, universaque civitate benemeriti illi enim huius Nostre Reipublicae successivis temporibus quoscumque honores ac dignitates adepti sunt, et supremos Magistratus summa cum laude gesserunt, et propria suae agnationis insignia patritiorum florentinorum more gestantes suis campis probatisque coloribus distincta ut hic videre licet, veluti alii splendidissimi in patria optimates vixerunt. Quae inter Johannem Cavalcantem Philippi Cavalcantis patrem precipue conmemoramus, qui in hac civitate de gens Genepram Mannellam iam pridem clarissimam duxit uxorem, et predictum Philippum ex ea legitimo matrimonio suscepit filium, qui nobilissimo Lusitaniae Regno haudquaquam a suis parentibus degenerans honoratissimo sumptu commoratur. Quamobrem familias ipeas earumque gentiles, ut decet, diligimus, et ipsum Philippum propteres significamus prefatis ingenuis parentibus Johanne vz et Genepra legitimis natalibus, et benestissimis familijs ortum merito nobis esse carissimum, et harum literarum nostrarum testimonio, quas plumbei nostri sigilli appensione communiri iussimus, sue nobilitatis fidem facimus. Optamus insuper rogamusque in gratiam nostram quodcunque opportunum ipsi fuerit honoris, et commodi non vulgari benignitate conferrit. Erit enim id nobid gratissimum et quod maioris obsequij loco acceptum feramus. Datum Florentie in nostro Ducali Palatio, die xxiij Augusti 1559. Ducatus vero nostri Florentini xxiij Senensis iij.

Dou agora a tradução que aparece em Jaboatão, no Catálogo Genealógico:

Cosme de Médicis, por graça de Deus, segundo Duque de Florença e Siena etc. A todos e cada um, a cujas mãos chegarem as presentes letras, saúde e prosperidade etc. A família dos Cavalcantis nesta nossa cidade de Florença, como também a família dos Mannellis, resplandece com singular nobreza e luzimento, dos quais até este tempo têm saído varões de nós, de nossos progenitores, e da nossa república, beneméritos; porque eles têm alcançado em sucessivos tempos todas as honras e dignidades da nossa cidade, e têm servido os supremos magistrados com grande louvor, trazendo as armas próprias da sua família, à maneira dos patrícios florentinos, distintas em seus campos e cores conhecidas, como abaixo se pode ver, viveram com os outros mais luzidos fidalgos de sua pátria. Entre os quais contamos principalmente a Giovanni Cavalcanti, pai de Filippo Cavalcanti, o qual vivendo nesta cidade em tempos passados, casou com a nobilíssima Ginevra Mannelli, de quem teve de legítimo matrimônio ao dito Filippo Cavalcanti, o qual, não degenerando de seus pais, vive com toda a pompa no nobilíssimo reino de Portugal. Pelo que amamos, como nos é lícito, as mesmas famílias, e a seus descendentes, e até disso significamos que o mesmo Filippo Cavalcanti, nascido dos ditos pais nobres, a saber Giovanni e Ginevra, de legítimo matrimônio e de famílias muito nobres, com razão é muito amado de nós, e com o testemunho das presentes letras, que mandamos selar com o nosso selo pendente de armas, certificamos sua nobreza; e além disso desejamos e pedimos que por nosso respeito se lhe faça com toda a benignidade muita honra, porque nos será isso muito agradável. Dado em Florença em nosso Palácio dos Duques a 23 de agosto de 1559, e do nosso ducado florentino 23o., e do de Sena o 3o.

Pronto. Os Cavalcantis são, de fato, patrícios florentinos, e Filippo Cavalcanti, que veio para o Brasil, era filho de Giovanni Cavalcanti e de Ginevra Mannelli. Tais dúvidas sobre a origem de tal ou qual emigrante, ou primeiro ancestral de alguma família brasileira, são comuns, até porque é razoável supormos que a tradição oral intra-familiar tende a engrandecer os antepassados.

Mas, com estas gentes cuja história ando percorrendo, não há engrandecimento. Os Dorias são de origem genovesa, como está dito no depoimento do filho de Clemencia Doria genovesa, Cristóvão da Costa Doria, perante a inquisição, em 1592. E encontramos diversos Dorias, genoveses, exercendo a mercatura em Portugal, nos séculos XV e XVI. Os Acciaiolis são patrícios florentinos, como se afirma na certidão de nobreza de Simone Acciaioli, passada pelos priores de Florença em 1515, e na sua carta d’armas portuguesa, de 1529. E, agora, os Cavalcantis, igualmente patrícios florentinos.

Mas vamos ver abaixo um caso interessante, no qual aparentemente houve, teria havido interesse em apagar detalhes das genealogias, para esconder fatos considerados à época depreciativos ou até infamantes — heresias, suspeita de judaísmo. É o que acontece com os Holandas, me parece.


Mais Cavalcantis.

Esta família é muito antiga, e tem provavelmente origem nalguma casa feudal lá em cima, pelo século X. É uma família consular, o que quer dizer, no século XII, Florença era governada por funcionários designados como cônsules, e alguns dos Cavalcantis tiveram então tal cargo em Florença. Em 1246, um Cavalcanti, junto com um Adimari — outra família de raízes feudais — chefiavam a Parte Guelfa, o partido ligado aos interesses papais, sempre em Florença. Eram, no século XIII, grandes comerciantes, sendo membros da Arte di Calimala.

É possível que a origem feudal se reflita nas armas desta família: de prata, semeado de cruzetas recruzetadas de vermelho (cruzetas recruzetadas são cruzes simétricas, sem o pé alongado, onde cada um dos quatro braços termina numa cruz de três braços). Timbre, um hipógrifo (figura fantástica, parte de trás cavalo e parte da frente águia, com as asas abertas) de negro, alçando vôo de uma fogueira de vermelho e ouro. Digo que tais armas refletem, ou refletiriam uma origem feudal, porque armas com cruzes e cruzetas são, a essa época, usadas por famílias cujos membros foram cruzados.

Muito tempo depois, e após diversas peripécias, encontramos os Cavalcantis como mercadores abastados em 1520. Três irmãos Cavalcantis, Stoldo, Schiatta e Giovanni, acham-se então em Londres, onde comerciam. Servem à coroa inglesa, o que lhes faz merecerem um acrescentamento às suas armas, que lhes é concedido por Henrique VIII (um acrescentamento são peças e móveis novos adicionados a um brasão; assim, por exemplo, Luiz XI da França acrescenta, homenageando Piero il Gottoso de’ Medici, as flores de liz da casa real francesa às armas dos Médicis).

No caso dos Cavalcantis, o acrescentamento é: sobre o brasão com as cruzetas, uma asna de azul carregada de um leonel de ouro no seu ápice, entre duas flores de lis do mesmo. Explico: asna, ou chaveirão, é uma peça em forma de V invertido, como as vigas semelhantes que sustentam os telhados. A peça, de azul, tem um leãozinho — o leonel — dourado no ápice, e duas flores de lis igualmente douradas, um pouco mais abaixo do leonel, uma de cada lado sobre a asna.

Numa descrição moderna, as armas de Giovanni Cavalcanti passam a ser: de prata, semeado de cruzetas de vermelho, com uma asna de azul, brocante sobre o semeado, carregada de um leonel de ouro no ápice, entre duas flores de lis do mesmo. Elmo de prata guarnecido de ouro, paquife de negro e prata, e por timbre, saindo do virol, um cavalo alado saltante, a parte anterior de prata, asas de azul, saindo de um fogo de vermelho e ouro.

Giovanni Cavalcanti, de quem vou falar um pouco mais, é o pai de Filippo Cavalcanti, o que passa ao Brasil por volta de 1560.


O mistério de Filippo Cavalcanti.

O mistério é o seguinte: por que este homem, Filippo Cavalcanti, deixou a Itália e veio se fixar no Brasil? Não era um foragido político: os termos da certidão de nobreza que lhe passa Cosimo de' Medici em 1559, mostram um florentino em pleno uso e gozo de seus direitos como cidadão. Mais: era filho de um homem rico, e muito bem relacionado no Vaticano, em Florença e na corte londrina. E um de seus irmãos, Guido, vivia na França, junto a Caterina de' Medici, a quem inclusive serviu de embaixador.

Por que veio, Filippo Cavalcanti, para o Brasil?

Já se tinha alguma idéia da importância de Giovanni Cavalcanti, pai de Filippo, como mercador e cortesão, mas os trabalhos recentes de Cinzia Sicca detalharam-lhe em profundidade a biografia. Giovanni Cavalcanti nasceu em Florença em 8 de outubro de 1480; foi batizado em Santa Croce, em 11 de outubro, às 4 da tarde. Era filho de Lorenzo di Filippo Cavalcanti, e de Contessina, filha de Ugo Peruzzi. O avô paterno, Filippo di Jacopo di Filippo Cavalcanti, tinha se casado em 1458 com Francesca, filha de Lucantonio di Niccolò degli Albizzi, cujos costados exibem toda a história de Florença, nos séculos XIII e XIV.

Sobre os ancestrais Cavalcantis mais remotos, só podemos, no momento, especular. Mas vou fazer isso, mais adiante.

Giovanni Cavalcanti fixa-se em Londres, como mercador, desde 1509, ou talvez um pouco antes. Torna-se logo fornecedor da corte inglesa: especializa-se em bens suntuários, de tecidos caros, damascos, panos tecidos com fios de ouro, até a negociação de objetos de arte, de quadros a esculturas e, enfim, o projeto de monumentos, sobretudo monumentos fúnebres. Uma das negociações, que Cinzia Sicca examina em detalhe, é o projeto de um mausoléu para Henrique VIII e sua mulher (de então), Catarina de Aragão.

Giovanni di Lorenzo Cavalcanti corresponde-se, no exercício de seu ofício, com artistas como Michelangiolo. É citado por Vasari. Suas atividades dão-se no eixo Londres-Florença-Roma. Ligado aos Médicis, devido à posição no ambiente político de Florença e através de parentesco ao ramo dito popolano da família de' Medici, torna-se uma espécie de quabrador de galhos para o Cardeal Giovanni de' Medici em Londres. Quando este é eleito papa em 1513 e torna-se em Leão X, Giovanni Cavalcanti é feito camareiro papal, o que lhe dá um status de primeiro plano ao se apresentar perante Henrique VIII. Envolve-se na diplomacia que cerca a concessão do chapéu de cardeal a Wolsey, principal ministro de Henrique; está ao lado do rei inglês quando este vai se encontrar com Francisco I de França no Campo das Tendas de Ouro (sabemos disso graças a uma citação feita em 1520) e, enfim, novamente participa de uma negociação entre o papa e o rei da Inglaterra, quando graças a um tratado que Henrique escreve contra Lutero, Leão X concede-lhe a Rosa de Ouro e o título de Defensor Fidei.

Em 1521, Giovanni di Lorenzo Cavalcanti está de volta a Florença, e lá se casa com Ginevra, filha de Francesco di Lionardo Mannelli. Francesco Mannelli era o sócio de Giovanni Cavalcanti em Florença nos negócios de produção, compra e venda de tecidos de seda, pois os Mannelli eram setaiuoli, donos de uma tecelagem de seda. Eram gente rica, recentes nesse comércio de seda, mas com uma história interessante, entremeada a fundo à história de Florença. Pois os Mannelli eram gibelinos — embora um ramo algo desgarrado do clã tenha optado pelo partido guelfo — e de origens feudais autênticas mas longínquas. Em 1260, Tommasino e Simone, filhos de Rinucinno di Benintendi Manneli, são conselheiros gibelinos da comuna; em 1261 encontramos Abate, filho de Abate Mannelli. Atestam-se como comerciantes depois de 1280, e por esta época uma violenta vendetta opõe os Mannellis à família Velluti. Em 1278 é chefe do ramo guelfo certo Mannello Mannelli, comerciante riquíssimo.

Giovanni di Lorenzo Cavalcanti era um homem de grande requinte e gosto muito elaborado: ainda jovem, corresponde-se com Luigi Guicciardini sobre a descoberta do Laocoon em Roma (isso, em 1506); em 1508, em cartas sempre dirigidas àquele Guicciardini, discute a descoberta de tumbas estruscas em Castellina. Foi quem atraiu para Londres o escultor Pietro Torrigiano, de quem conhecemos o busto de Henrique VII, hoje no Victoria and Albert Museum.

Giovanni di Lorenzo Cavalcanti morreu em Londres em 1542; teve com monna Ginevra três filhos, Schiatta, que aparentemente sucedeu ao pai na gestão dos negócios, Guido, que serviu a Caterina de' Medici e a acompanhou quando esta se mudou para a França, e Filippo, que vem para o Brasil.

Não há dúvida que o Cavalcanti ancestral da família Cavalcanti de Albuquerque é este Filippo di Giovanni Cavalcanti, filho de Giovanni e de madonna Ginevra Mannelli. Refaço então a pergunta que havia feito acima: por que este homem, criado em duas grandes cortes renascentistas, Londres e Roma, filho de um homem riquíssimo, vem se enfurnar no Brasil?


A linha (tentativa) dos Cavalcantis até Filippo Cavalcanti.

Em resumo: pelo que vi dos Cavalcantis, o ramo que veio para o Brasil, já documentado até meados do século XIV, e provavelmente ao século XIII, é aquele que passou a Nápoles em começos do século XIV. Por enquanto, meu argumento é só onomástico - é o ramo dos Giovannis e Filippos que se sucedem e se alternam nessa família - mas espero que logo apareça base documental mais firme.

Por outro lado, vejo que as genealogias manuscritas dessa família, Ammirato e Gamurrini, estão todas furadas, e erram longe longe com respeito ao ramo brasileiro.
No caso do ramo napolitano, que adquire logo uma grande importância no reino de Nápoles no século XIV, onde logo chegam a cargos da corte e são feitos barões, vejo nessa ascensão a ajuda sobretudo de Niccolò Acciaioli (1310-1366), grão senescal de Nápoles, um tremendo nepotista. Niccolò adotou formalmente - está no seu testamento - dois primos de Florença, um deles Ranieri Acciaioli, depois Duque de Atenas. Chamava messer Donato Acciaioli, primo algo longe, de “irmão.” E Mainardo Cavalcanti era casado com Andreina Acciaioli, irmã de Donato e Ranieri, e segundo testemunhos, Amerigo Cavalcanti, irmão de Mainardo, era casado com uma irmã de nome não sabido, de Andreina. (Amerigo Cavalcanti foi o avô de Ginevra Cavalcanti, casada em 1416 com Lorenzo de' Medici il Popolano, trisavós do grão-duque Cosimo de' Medici, o que assina a certidão de nobreza de Filippo Cavalcanti.)

A linha do nosso Filippo Cavalcanti, fixado no Brasil, principia com certeza documental noutro Filippo, que conhecemos, por enquanto, apenas através dos patronímicos de seu neto, Filippo di Jacopo di Filippo, que se casa em 1458 com Francesca degli Albizzi. Quem é, ou quem poderia ser, este mais antigo dentre os Filippi Cavalcanti?

Vivia no século XIV, é o que sabemos com certeza. Filippo não é nome frequente entre os Cavalcantis, mas no século XIV um se destaca, um homônimo, no nome e patronímico, do que passa ao Brasil dos séculos depois: é um primeiro Filippo di Giovanni, que vivia em Nápoles, onde era dos mercadores florentinos mais influentes junto à corte dos reis angevinos. Este Filippo Cavalcanti foi camareiro régio em 1343, e Barão de Sartano, investido em 1363. Casou-se com Isabella Adimari. Teve um filho conhecido, Amerigo Cavalcanti, governador de Cápua, Barão de Sartano; atestado até 1406. É com certeza aquele Amerigo Cavalcanti referido nas correspondências de Niccolò Acciaioli e de Ranieri Acciaioli, Duque de Atenas — porque se houvessem dois homônimos, isso certamente apareceria nos documentos.

Não é o Filippo que procuramos, pai de Jacopo Cavalcanti e avô de outro Filippo. O que procuramos nasceu por volta de 1360, porque seu filho Jacopo Cavalcanti nasce em 1392 — tem 35 anos em 1427, e ainda está solteiro, lemos no Catasto de Florença. Mas poderia ser filho do Filippo atestado em Nápoles. Poderia: é uma conjectura.


Os Cavalcantis e a conjura dos Pazzi, 1478.

Filippo di Jacopo di Filippo Cavalcanti casou-se em 1458 com Francesca, filha de Lucantonio degli Albizzi. A mulher descendia de uma família oligárquica, monopolizadora do governo da cidade antes dos Médicis, mas pelo que sabemos, Filippo di Jacopo era dos palleschi, isto é, dos partidários dos Médicis.

Teve ao menos dois filhos, Lorenzo — Lorenzino — e Andrea, que vamos encontrar ao lado do Magnífico Lorenzo de’ Medici quando tentam assassiná-lo, em 1478.

Lorenzo de’ Medici, il Magnifico, era um homem excepcionalmente feio, com um rosto como que esculpido grosseiramente. No entanto, no trato pessoal era encantador, e tão excepcionalmente sedutor que sua feiúra como que desaparecia, ou era velada pelo trato amável, agradável, que sabia praticar junto aos com quem conversava. Era também culto, bom poeta e interessado nas artes plásticas, tendo servido como mecenas a diversos pintores e escultores em Florença na segunda metade do século XV — aliás, vários membros de sua família, como seu primo e homônimo Lorenzo di Pierfrancesco il Popolano, protetor de Botticelli.

O irmão do Magnífico, Giuliano de’ Medici, embora não tão brilhante quanto o primogênito, era ao contrário personagem de bela figura, e tão encantador quanto Lorenzo o era. No entanto, ambos eram detestados pelo papa, Francesco della Rovere, Sixto IV.

Os Médicis era vistos pelas famílias mais antigas de Florença como uma família de arrivistas e novos-ricos, gente “de baixa extração” que subira graças a golpes de sorte. A família do papa Sixto IV, eleito em 1471, era mais modesta ainda: Francesco di Savona era filho de um pescador, Lionardo, e adotou o nome della Rovere (do Carvalho) para simbolizar o que via como representação de sua personalidade. Frade franciscano, chegou a geral da ordem, e quando é eleito papa, é recebido com esperança.

Os Médicis eram então os banqueiros papalinos. Embora de início as relações entre Florença e o papa Sixto IV fossem cordiais, o primeiro confronto se dá quando Sixto IV deseja comprar Imola como um feudo para seu sobrinho Girolamo Riario. Lorenzo o Magnífico diplomaticamente se recusa a financiar tal compra, que via como lesiva aos interesses florentinos, mas o papa obtem um empréstimo adequado com os rivais dos Médicis em Roma, os Pazzi, através de um dos chefes desta casa bancária, Franceschetto de’ Pazzi.

(Os Pazzis eram do antigo grupo de famílias nobres que governavam Florença antes das constituições republicanas do final do século XIII, e desprezavam os Médicis como parvenus. Sua linhagem incluía até um cruzado, Pazzo di Ranieri, que teria estado no Santo Sepulcro em 1099; e lembremos que o nome da família significa “maluco.”)

Mais confrontos entre Lorenzo e o papa dão-se com a nomeação de Francesco Salviati, outro inimigo dos Médicis, como arcebispo de Pisa. O governo de Florença nega-lhe, em consequência, durante três anos, a admissão à sua diocese, e quando o faz, já tem contra si, unidos, os que serão os chefes da conjura dos Pazzi, o arcebispo Salviati, Franceschetto de’ Pazzi, e Girolamo Riario, o sobrinho do papa. Os conjurados contratam um condottiero, Gian Battista da Montesecco, para liderar as tropas que invadirão Florença, e pedem-lhe também que assassine Lorenzo e Giuliano de’ Medici. Montesecco vai a Florença, é recebido pelo Magnífico Lorenzo, que o seduz com seu encanto bem conhecido — e recusa-se a participar do assassínio, embora concorde em chefiar as tropas dos conjurados.

Montesecco é substituído por dois frades, e a oportunidade de se realizar o assassinato dos irmãos Médicis acontece num domingo, 26 de abril de 1478, numa missa na catedral, em homenagem a um sobrinho-neto do papa, Raffaele Riario, que — aos dezessete anos — acabara de receber o chapéu de cardeal. O ataque dá-se no momento da consagração da hóstia: Giuliano de’ Medici é morto por Bernardo Bandini Baroncelli e por Franceschetto de’ Pazzi, que, este, lhe perfura o corpo com mais de uma dezena de facadas. Os dois frades, Antonio Maffei e Stefano da Bagnone, atrás de Lorenzo, atacam-no com uma facada que, dada sem jeito, mal lhe fere o pescoço. Lorenzo pula, defende-se com a capa, e é cercado pelos amigos com os quais havia chegado na catedral, entre os quais Lorenzino Cavalcanti e seu irmão Andrea. Lorenzino é ferido quando tenta agarrar um dos frades assassinos, que logo em seguida mata mais um dos amigos do Magnífico, Francesco Nori.

O desfecho é terrível. O arcebispo Salviati, que com um bando de mercenários peruginos procura no Palazzo da Signoria o gonfaloneiro Petrucci, é por este desarmado, preso, e depois que rapidamente capturam-se os mercenários que o acompanhavam, o arcebispo é enforcado numa corda que se amarra nas ameias do Palazzo, assim como Franceschetto de’ Pazzi. Todos os conjurados são mortos, inclusive Montesecco e Jacopo de’ Pazzi, que hesitara longamente em entrar na conspiração. Baroncelli, que fugira até Constantinopla, é lá preso, recambiado a Florença, torturado, e enforcado como os outros, pendurado numa janela do palácio do Bargello.

Lorenzo, dito Lorenzino, de’ Cavalcanti, e sua mulher Contessina, filha de Ugo di Rinaldo Peruzzi, tiveram como filho a Giovanni di Lorenzo Cavalcanti, o mercador que vai servir a Henrique VIII. Contessina Peruzzi morreu em 1516.


Origem dos Cavalcantis.

Temos a genealogia dos Cavalcantis brasileiros desde meados do século XIV. Mas a família é bem mais antiga; traça-se, na confusão das genealogias manuscritas, até o século X. Só que tais genealogias são contraditórias e díspares, de modo que, sem a ajuda da base documental, nada podemos concluir de seguro.

Segundo tais genealogias, mas sem suporte documental, a família principiaria num certo Benedetto Cavalcanti, cavaleiro — donde o nome, cavalcante — de origem germânica, e que teria vivido entre fins do século X e começos do XI. Mas o primeiro membro atestado é Gianozzo Cavalcanti, cujo nome é conhecido através do patronímico do filho, este, personagem documentado. Gianozzo teria casado com uma Adimari, o que se infere do prenome do outro filho que lhe é atribuído, Adimaro Cavalcanti. Gianozzo Cavalcanti viveu nos começos do século XII; as memórias posteriores dão-no como filho de um Cavalcante di Giamberto di Benedetto, sendo este Benedetto o tal mais antigo ancestral desta família.

A família, no século XII, era muito rica. Possuía casas na região do Mercado Novo, em Florença, e um castelo no Val di Greve e outro no Val di Pesa.

Foi filho de Gianozzo, Cavalcante de’ Cavalcanti. É um dos cônsules da comuna de Florença em 1176. Sendo guelfo, é dado como se tendo envolvido nos conflitos dos que se opuseram a Frederico Barbarroxa, quando este invadiu a Itália. Sua mulher poderia ter sido uma Aldobrandini, porque um de seus filhos tem esse nome. Um seu outro filho, Schiatta Cavalcanti, foi cônsul em Florença em 1214.

O tronco do ramo napolitano é um Pazzo Cavalcanti, filho do Cavalcante de’ Cavalcanti supra, de quem diz Gamurrini que era bisneto Mainardo Cavalcanti, casado com Andalò ou Andreina Acciaioli — casaram-se, Mainardo e Andreina, depois de 1370. Mainardo era irmão de Amerigo Cavalcanti. Se fosse correta tal afirmativa, seria filho de Pazzo o Giovanni Cavalcanti que se atesta em Nápoles em começos do século XIV, mas, pelas datas — o irmão de Pazzo Cavalcanti, Aldobrandino Cavalcanti, é atestado em Florença em 1215 — antes seria aquele Giovanni, neto de Pazzo.

Seguir-se-iam portanto o neto de Pazzo, Giovanni Cavalcanti, expulso de Florença em começos do século XIV (era guelfo, e bianco, ou seja, guelfo no partido aristocrático). Foi seu filho, nascido por volta de 1320, Filippo Cavalcanti, camareiro régio no reino de Nápoles em 1343. Casou com Isabella Adimari.

Teve diversos filhos, como Nicolao, que nasce em 1350, e se atesta em Florença em 1427; Amerigo, que foi Barão de Sartano, e colaborou com Niccolò Acciaioli, grão-senescal de Nápoles e com Ranieri e Antonio Acciaioli, primeiro e segundo Duques de Atenas; Mainardo Cavalcanti, também ligado, pelo casamento e pelos negócios, como dissemos, aos Acciaiolis, e — supomos, conjecturamos — o Filippo Cavalcanti, nascido cerca de 1360, que originará o ramo brasileiro.

De Amerigo, cuja descendência é conhecida até hoje, no sul da Itália, foi filho Giovanni Cavalcanti, pai de Ginevra Cavalcanti, que em 1416 casou-se com Lorenzo de’ Medici il Popolano, irmão mais moço de Cosimo de’ Medici, il Vecchio. Noto que alguns genealogistas dizem que a mulher de Amerigo Cavalcanti foi uma Acciaioli, irmã de Andalò Acciaioli, mencionada acima, sua cunhada.

E volto agora a Giovanni Cavalcanti, nascido em Florença em 8 de outubro de 1480, mercador de quem já falei. Casou-se, como disse, com Ginevra Mannelli, sepultada em 11 de abril de 1563 na igreja della Santa Croce, em Florença. Filha de Francesco di Lionardo Mannelli, e de Maddalena di Gianozzo di Giovanni Naldi.

E seu filho é o nosso Filippo Cavalcanti, nascido em 12 de junho de 1525 em Florença e batizado na igreja da Santa Croce. Atestado no Brasil desde 1560.


Guido Cavalcanti, o poeta, e Giovanni Cavalcanti, o humanista.

Um dos prazeres que tenho ao falar das famílias patrícias de Florença, é a presença nelas de gente como Guido Cavalcanti, Giovanni di Niccolò Cavalcanti, Donato Acciaioli — e, claro, Lorenzo de’ Medici, o Magnífico. Ao lado das gentes que parece que saem de romances de Michel Zevaco ou de filmes de Errol Flynn nos anos 50 do século XX, gente personagem de história de capa e espada, tem intelectuais também.

Guido Cavalcanti, o poeta, nasceu em Florença em 1255. Muito jovem ainda, noivou com uma filha de Farinata degli Uberti, Bicce ou Beatrice degli Uberti, que desposa em 1267. Guelfo, mas de partido bianco, o partido da aristocracia, aparece em 1280 entre os que garantem a paz negociada entre guelfos e gibelinos. Os neri, guelfos pertencentes ao partido rival ao de Guido, predominam em Florença. Cita-se dele que tentou assassinar Corso Donati, chefe do partido oposto ao seu. Por este motivo, e por motivos análogos, Guido Cavalcanti é exilado em Sarzana em 1300, de onde volta já doente de malária para morrer em Florença em agosto de 1300. Eram seus amigos e confrades Dante, Dino Compagni, o cronista da história de Florença, e muitos outros.

Depois de Dante foi o maior poeta florentino deste período pré-renascença. Era um homem de grande cultura, conhecedor da filosofia árabe ibérica, sobretudo Averróis, cujas obras então começavam a se difundir na Europa.

Era filho de um Cavalcante de’ Cavalcanti, que se achou exilado em Lucca em 1260, depois da vitória gibelina em Montaperti. Era neto de messer Schiatta Cavalcanti, cônsul de Florença em 1214; bisneto de outro Cavalcante de’ Cavalcanti, irmão de Pazzo Cavalcanti, de quem parece derivar-se-iam os Cavalcantis de Nápoles e, penso, do Brasil. Grande poeta — eis um de seus sonetos:

Io non pensava che lo cor giammai
Avesse di sospir’ tormento tanto,
Che dell’anima mia nascesse pianto
Mostrando per lo viso agli occhi morte.

Non sent’o pace né riposo alquanto
Poscia ch’Amore e madonna trovai,
Lo qual mi sisse: — tu non camperai,
Ché troppo è lo valor di costei forte —.

La mia virtù si part’o sconsolata
Poi che lassò lo core
A la battaglia ove madonna è stata:

la qual degli occhi suoi venne a ferire
in tal guisa, ch’Amore
ruppe tutti miei spiriti a fuggire.

O segundo personagem é quase contemporâneo a seu homônimo, o nosso Giovanni di Lorenzo Cavalcanti. Pois este nasce em 1480 e morre em 1542. Seu primo, o — também — humanista Giovanni di Niccolò di Giovanni di Amerigo Cavalcanti, nasce em Florença em 1444, e lá morre, moço ainda, em julho de 1497. Sobrinho de Lorenzo de’ Medici il Popolano, porque sua tia Ginevra, irmã de seu pai, casou-se com aquele pallesco em 1416, Giovanni di Niccolò foi grande amigo de Marsilio Ficino, e partidário de Savonarola. Teve breve carreira política: foi prior em 1488, e ainda em 1497, é um dos embaixadores de Florença a Carlos VIII da França, que os encntra em Sarzana. Enquanto preso por se haver recusado a pagar certo imposto em Florença, começou a escrever suas Istorie Fiorentine, que só serão publicadas em 1838.


Filippo di Giovanni Cavalcanti no Brasil, de 1560 até algo antes de 1614.

Primeiro vamos ver o que dele conta Scipione Ammirato, na sua Istoria della Famiglia de’ Cavalcanti :

Filippo di Giovanni Cavalcanti, irmão [de Guido e de Schiatta] foi grandíssimo homem, que por volta do ano de 1550 partiu de Florença e andou no reino de Portugal, em Lisboa, e de lá passou ao reino do Brasil, distante de Portugal três mil milhas pelo mar, e chegou na cidade de Pernambuco, à vila de Olinda no dito reino, no qual se fazem grandíssimas quantidades de açúcar, e se tornou rico. Se aparentou [casou-se] com a senhora D. Catarina, filha do senhor Jerônimo de Albuquerque, nobilíssimo senhor, de família nobre do reino de Portugal e Brasil. Da qual recebeu alguns engenhos de refinar açúcar, e com seu engenho e modo tornou-se riquíssimo, e naquele país, grandíssimo homem, que adquiriu [boas] graças com aquele povo, e governou com seu engenho, porque tinha grande cabeça, todo aquele estado com grandíssima satisfação geral daqueles povos, que o estimavam grandissimamente, e teve muitos filhos, Jerônimo, João, Lourenço, Filipe, que viveram naquele reino honradamente, e não tiveram sucessão todos porque naquele reino se usa que o filho maior é o verdadeiro herdeiro, e lhes toma todos os bens do pai como morgado, e é obrigado a apoiar os outros irmãos. Este foi Antonio, que nasce por volta do ano de 1560, e teve descendência.

(Corrigi os nomes próprios, e noto que Ammirato faz referência indireta ao fato de Filippo Cavalcanti ter sido lugar-tenente do donatário de Pernambuco, isto é, o segundo homem da capitania.)

Pereira da Costa vai na mesma direção que Ammirato:

… como faz também o capitão loco-tenente de Jorge de Albuquerque [donatário da capitania] que é Felipe Cavalcanti…

Da documentação coetânea sabe-se que Filipe Cavalcanti foi lugar-tenente — segundo em comando — na capitania de Pernambuco ao menos entre 1588 e 1590, e possivelmente durante um período mais extenso. Segundo Pereira da Costa, Filipe Cavalcanti já residia em Pernambuco em 1566. E era rico:

Efetivamente, faustoso tratamento tinha Filipe Cavalcanti em Pernambuco. Filipe Sassetti, comerciante e viajante florentino de fins do século XVI, em interessantes cartas relativas ao comércio dos portugueses no oriente, fornece preciosas indicações sobre o seu compatriota Cavalcanti. Sobre o que escreve Sassetti, e pelo que se lê em trabalhos históricos sobre o desenvolvimento de Pernambuco, Filipe Cavalcanti possuía vários engenhos de açúcar, dispunha de extensos territórios e de muitos escravos, montava cavalos de raça ricamente ajaezados, organizava e tomava parte em cavalhadas e torneios públicos, vestia-se com grande distinção e elegância, orçando as suas despesas anuais em perto de oito mil escudos.



Os engenhos de Filipe Cavalcanti, nomeadamente Santa Rosa, Santana e Utinga, estavam situados numa légua de terra em quadra, que lhe concedera o segundo donatário Duarte Coelho de Albuquerque, situada no Cabo de Santo Agostinho, e pegadas com as terras de João Pais Barreto, correndo ao longo da ribeira do Arassuagipe, tanto da banda da dita ribeira como da outra, cujas terras foram judicialmente demarcadas em 12 de outubro de 1580.

Filipe Cavalcanti morreu em avançada idade, antes do ano de 1614 em que faleceu sua viúva, e foi sepultado na capela de S. João da igreja matriz do Salvador de Olinda, hoje catedral, da qual eles eram os seus padroeiros.

Filippo di Giovanni Cavalcanti casou-se, provavelmente entre 1560 e 1565, com Catarina de Albuquerque, nascida cerca de 1545, filha de Jerônimo de Albuquerque e de Maria do Arcoverde, a índia que a tradição quer filha do cacique Arcoverde. Deles falo depois. Agora vou falar dos filhos de Filippo e Catarina.

Foram: Diogo, falecido menino (seu nome deve lembrar os Jacopos da linha paterna de Filippo); Antonio Cavalcanti de Albuquerque, o herdeiro; Lourenço Cavalcanti de Albuquerque, governador de Cabo Verde depois de ter sido comandante de tropas portuguesas nas lutas contra os holandeses na Bahia, onde casou e teve descendência (o nome lembra o avô paterno de Filippo); Jerônimo Cavalcanti de Albuquerque; Filipe Cavalcanti de Albuquerque, o qual teria falecido de pouca idade; D. Genebra de Albuquerque, D. Joana Cavalcanti, solteira; D. Margarida de Albuquerque; D. Catarina de Albuquerque, D. Filipa de Albuquerque, D. Brites de Albuquerque — esta, solteira também.

D. Margarida de Albuquerque — dou-lhes, às senhoras acima, o dona porque assim o faz a tradição, mas não sei se o tinham ou usavam — casou com João Gomes de Mello, sr. do Trapiche do Cabo de Santo Agostinho. Casou novamente D. Margarida com Cosme da Silveira. Do casamento com João Gomes teve uma filha sabida, D. Anna Cavalcanti, que em 1618 casou com Gaspar Acciaioli de Vasconcellos, madeirense, como já dissemos. João Gomes de Mello era filho de um homônimo, e de Anna de Holanda, filha de Arnal de Holanda, personagem misterioso, de quem falo agora.

Noto, enfim, que Filippo Cavalcanti foi, duas vezes, denunciado à inquisição. Uma primeira vez porque possuía uma bíblia “em linguagem,” isto é, uma bíblia em latim. A segunda vez, por práticas homossexuais, práticas que eram algo corriqueiras na Florença dos séculos XV e XVI. Alessandro de’ Medici, Duque de Florença, e seu primo e assassino, Lorenzaccio de’ Medici, costumavam repartir a cama, com ou sem parceiras do outro sexo junto a eles. E Santo Antonino, que dirigiu a diocese de Florença no período, costumava verberar contra a sodomia, tanto hétero quanto homossexual, praticada pelos adolescentes e jovens florentinos; no caso da heterossexual, ou como método anticoncepcional ou como forma de preservar uma virgindade, digamos, técnica. Pregou sem grande sucesso. No Brasil, mergulhado na cultura religiosa da Ibéria, bem menos tolerante, denunciaram-no, ao nosso Filippo, à inquisição.

Os Albuquerques.

Os Albuquerques de Jerônimo de Albuquerque, sogro de Filippo Cavalcanti, eram os chamados Gomides Albuquerques, porque descendentes do casamento, trágico, de D. Leonor de Albuquerque e de João Gonçalves de Gomide.

João Gonçalves, homem rico, era de nobreza muito recente. O pai, Gonçalo Lourenço de Gomide, tão ou mais rico, esteve em 1415 em Ceuta acompanhando D. João I; diz-se que levou-lhe quatrocentos homens armados para a empresa. Foi recompensado: o próprio rei armou-o cavaleiro, e depois fez a Gonçalo Lourenço, senhor de Vila Verde dos Francos. Foi também — nome delicioso, que já não nomeiam cargos burocráticos com tal espírito — escrivão de puridade, ou seja, secretário particular, de D. João I.

O filho, João Gonçalves de Gomide, foi igualmente senhor de Vila Verde e escrivão de puridade do rei. Casou-se na boa nobreza de Portugal com D. Leonor de Albuquerque, filha de Gonçalo Vaz de Mello, senhor de Castanheira, Povos e Cheleiros, e de D. Izabel de Albuquerque. Aí aconteceu a tragédia: nalgum momento antes de 1437, João Gonçalves de Gomide assassina a mulher. É preso, condenado, e degolado em alto cadafalso em Évora. Aos órfãos de pai e mãe, determina-se que tomem o nome da mãe como apelido de família, e se lhes nomeia um tutor e curador, isso em 24 de março de 1437.

O filho primogênito, Gonçalo de Albuquerque, 3o. senhor de Vila Verde, segundo carta de 2 de abril de 1454, foi o pai, entre outros, do grande Afonso de Albuquerque, o conquistador da Índia. Um filho segundo foi João de Albuquerque, chamado o Azeite, senhor de Esgueira (carta de 18 de dezembro de 1454). Foi o pai de Lopo de Albuquerque, dito o Bode, casado com D. Joana de Bulhão, filha de Afonso Lopes de Bulhão, um burguês lisboeta. E estes, pais de Jerônimo de Albuquerque, cognominado o Torto, que veio para Pernambuco em 1535 com seu cunhado Duarte Coelho, casado com a irmã de Jerônimo, D. Brites de Albuquerque.

Da descendência de Jerônimo de Albuquerque, falo em oportunidades outras; a seguir, conto aquela que passa pelos Cavalcantis. Teve filhos com índias, uma das quais os cronistas chamam Maria do Arcoverde, que seria filha de um cacique, Arcoverde, e depois, casando-se porque obedecia a ordens da rainha de Portugal, D. Catarina, fê-lo com D. Filipa de Melo e São Payo. São, estes, em boa parte, os Albuquerques Mellos; os ramos descendentes das índias são os Albuquerques Maranhões, os Fragosos de Albuquerque, entre outros.


Holandas: judeus ricos?

Há uma lenda confusa e inverificável cercando o ancestral primeiro dos Holandas em Pernambuco, Arnal de Holanda, casado com Brites Mendes a velha. Seria Arnal de Holanda filho de um certo Hendrick van Rhijnburg (Rheinburg, na forma alemã), barão batavo, casado com Margrete Florenz, irmã do papa Adriano VI, Adriaan Florenz-Dedel. Só que, para começar, o barão não se consegue documentar de jeito nenhum, e o papa Adriano VI, que reinou um ano, de 1522 a 1523, não teve irmãs, só dois irmãos.

Nos documentos quinhentistas em que comparece, Arnal de Holanda nada fala sobre seus pais. Sua mulher era notoriamente judaizante, Brites Mendes “a velha,” conforme testemunhos no pedido de ingresso na ordem de Cristo de José Gomes de Mello, que dela descendia. Mas havia em Portugal, na virada do século XV para o século XVI, uma família de Holandas, muito rica, de comerciantes abastados e muito viajados. Que eram judeus.

Vamos ver.

Em 15 de julho de 1561, Diogo de Holanda, “o Salomão,” se apresenta à inquisição. É dado como filho de dois judaizantes, Jacob de Holanda e Leonor Mendes (citada nos nobiliários como Cosma, e apelidada a Dona Rica). Nascera Diogo de Holanda, o Salomão, em 1535.

Em 5 de setembro de1561, Francisco Jácome, irmão de Diogo, recebe armas (devo dizer, recebe-as surpreendentemente). Sem que se diga o motivo, nessas armas o primeiro partido reproduz o quartel principal das armas do papa Adriano VI. No texto da carta d'armas não consta sua filiação.

Nesse meio tempo entram em cena parentes afins dos Holandas portugueses, os Lins ou Linz von Dorndorf, fidalgos alemães, cristãos, banqueiros de Ulm, riquíssimos e prepostos em Portugal dos Fugger, de Augsburg. Em 1564, Maximiliano II, majestade cesárea, envia carta a D. Sebastião, pedindo-lhe que atenda aos pleitos de seu vassalo Sebald Linz. Sebald Linz é genro de Francisco Jácome, supra, e portanto sobrinho afim do judaizante Diogo de Holanda. E o filho de Sebald Linz, neto de Francisco Jácome, chamado Bartolomeu Jácome Linz, casa-se com Joana de Gois e Vasconcelos, filha de Arnal de Holanda e de Brites Mendes.

Dois dados são relevantes aqui, me parece. Diogo “Salomão,” tio de Jácoma Mendes, mulher de Sebald Linz, apresenta-se espontaneamente à inquisição e é dispensado. Sebald Linz é personagem com influência suficiente para obter da majestade cesárea uma carta em seu favor, em que é dado como vassalo do imperador. São com certeza comerciantes ricos e influentes, esses Holandas e Lins. Mais uma coisa: Bartolomeu Jácome Lins vive em Lisboa. Por que vai ao Brasil buscar uma mulher para se casar, se não fora devido a parentesco e às práticas endogâmicas dessa gente?

Tenho para mim que Arnal de Holanda era também filho de Jacob de Holanda, dito “Jácome” de Holanda. Judaizante, casado com Brites Mendes, que, penso, era irmã ou sobrinha de Cosma Mendes, ou Leonor Mendes, a Dona Rica. Vieram para o Brasil para fugir à inquisição, que devia pesteá-los constantemente. Os que ficam em Portugal devem ter negociado — e pago bem — a carta de brasão de 1561, que lhes limpa o sangue e apaga o passado judeu.


Descendência de Filippo Cavalcanti no Brasil.

Existiu uma linha varonil, descendente de Filippo Cavalcanti, a família Cavalcanti de Albuquerque e Lacerda, que persistiu até começos do século XX. Mas os ramos de presença notável na história do Brasil são duas linhas com várias quebras na varonia Cavalcanti (isso é gíria de genealogista; quero dizer, uma sucessão de homens e mulheres, mas todos mantendo o nome Cavalcanti).

São a linha dos Suassunas, e a linha dos Pires de Carvalho e Albuquerque, antes Pires de Carvalho Cavalcanti de Albuquerque, na Bahia. Sobre esta última já escrevi, de modo que, nesta nota, vou ficar nos Cavalcantis de Albuquerque do engenho Suassuna, em Pernambuco.

Catarina de Albuquerque, filha de Filippo Cavalcanti e de sua mulher, a primeira Catarina de Albuquerque, casou-se com Cristóvão de Holanda e Vasconcelos, falecido em 1614, filho de Arnal de Holanda e de Brites Mendes — que nunca aparece nos documentos contemporâneos à sua vida, como Brites Mendes de Vasconcelos, de modo que não sei de onde lhes chega este apelido.

Filho segundo do casal Catarina e Cristóvão foi Cristóvão de Holanda e Albuquerque, vereador em Olinda em 1651. Casou-se com Catarina da Costa.

Pais de João Cavalcanti de Albuquerque, senhor do engenho Apoá, vereador em Olinda, ouvidor-geral da capitania de Pernambuco, feito cavaleiro-fidalgo da casa real em 1713. Casou-se com D. Isabel da Silveira de Castelo Branco.

Foi filho dos precedentes Cristóvão de Holanda Cavalcanti, casado com a parenta D. Paula Cavalcanti de Albuquerque.

Tiveram a Antonio Cavalcanti de Albuquerque, casado com D. Maria Manuela de Melo.

A filha do casal, D. Ana Cavalcanti, casou-se com o coronel Francisco Xavier Bernardes; seus descendentes, no entanto, todos, mantêm o sobrenome Holanda Cavalcanti de Albuquerque. Diversas linhas saem deste casamento.

A linha primogênita vem do capitão-mor Francisco Xavier Cavalcanti de Albuquerque, casado com D. Filipa Cavalcanti de Albuquerque, e pais do Coronel Suassuna, na verdade brigadeiro (general), José Francisco de Paula de Holanda Cavalcanti de Albuquerque.

Deles falo mais adiante.

Mas José Francisco foi avô de um grande de Espanha, Don José de Cavalcanti de Albuquerque y Padierna, Marqués de Cavalcanti, com grande descendência na nobreza espanhola. Sua irmã D. Ana Maria Francisca Cavalcanti de Albuquerque, nascida em Madrid em 1838, e falecida em Bruxelas em 1890, casou-se com Jules de Villeneuve, Conde de Villeneuve pela Santa Sé (“conde do Papa”), com descendentes na mais rebrilhante nobreza do Almanach de Gotha, os Condes Schlitz zu Görtz, altezas ilustríssimas, e os príncipes de Sayn-Wittgenstein, altezas sereníssimas.
Ainda filha de Francisco Xavier Bernardes e de D. Ana Cavalcanti, foi D. Maria Ana Francisca Cavalcanti de Albuquerque, casada com Francisco do Rego Barros, e pais de outro Francisco do Rego Barros, Conde da Boa Vista, com cuja biografia começamos este capítulo.


Os Suassunas e sua Academia.

Foi um fenômeno interessantíssimo: radicais republicanos no interior de Pernambuco, em fins do século XVIII e começos do XIX; radicais de origens aristocráticas. E, enfim, autoritários quando chegam ao governo e passam a exercê-lo.

Na Academia Suassuna, em Jaboatão dos Guararapes, Luiz de Paula e Francisco de Paula de Holanda Cavalcanti de Albuquerque, membros de uma célula maçônica que existia no engenho dos Suassunas desde 1790, concebem projetos políticos mirabolantes. Em 1816, por exemplo, chegam a pensar no resgate de Napoleão Bonaparte, então prisioneiro em Santa Helena, para que chefiasse um império que teria Pernambuco em seu centro. As ideologias da revolução pernambucana de 1817, e depois, a da Confederação do Equador, em 1824, surgiram no grupo dos Suassunas; eram visões políticas republicanas, mais perto das idéias norte-americanas que daquelas da revolução francesa.

A revolução de 1817 começou num incidente banal, de tropa, que precipitou a ação dos conjurados. Em 6 de março de 1817 os revolucionários tomam o poder e nomeiam um governo provisório, aclamando presidente a Domingos Teotônio Jorge, e tendo como seus ministros ao padre João Ribeiro, a Correia de araújo, José Luiz de Mendonça, e Domingos José Martins. O levante durou setenta e quatro dias.

O governador legal da província, Caetano Pinto de Miranda Montenegro, capitulou imediatamente e sem resistência. Mas tropas mandadas da Bahia, sob o comando de Luiz do Rego Barreto, depois premiado com o título de Marquês de Ferraz do Lima, reprimiram brutalmente o levante. Luiz do Rego fez executar aos dois Domingos, a José de Barros Lima, José Luiz de Mendonça, aos padres Miguelinho e Roma. Enforcado domingos Teotônio Jorge, a pedido de D. Carlota Joaquina, decapitou o cadáver, salgou sua cabeça, e enviou-a ao Rio, para que sua majestade a visse.

O ressentimento enorme contra essa repressão impiedosa estourou em 1824, quando do movimento da Confederação do Equador. Tudo explodiu depois que D. Pedro I dissolveu a assembléia constituinte. O Marquês do Recife, Paes Barreto, que presidia a junta governativa, demite-se, e é substituído por Manuel de Carvalho Paes de Andrade, eleito pelo povo do Recife. O movimento foi reprimido pelo pai de Caxias, Francisco de Lima e Silva, que fez executar os chefes, incluindo-se aí o frei Caneca, antes um panfletário que um conspirador ativo.

Uma nota final: em 1972, o governo do general Médici — sem parentesco algum à família histórica florentina, noto, nem parentesco nem similaridade de comportamento — fez repatriar os ossos de Pedro I, como parte das celebrações do século e meio da independência. Veio o caixão de Lisboa num boeing 707, cuja autonomia de vôo exigia uma parada no Recife para reabastecimento.

O que se segue me foi contado por um historiador alagoano: resolveram aproveitar a parada para fazer um velório do imperador que havia reprimido a conjura de 1824. O governador, acho que Moura Cavalcanti, fechou o Palácio das Princesas, e disse, aqui ele não entra. Na assembléia legislativa, o mesmo. Tentaram o Instituto Histórico, pior ainda. Acabaram forçando o velório dos restos de Pedro I nalgum salão oficial. Me completou o historiador meu amigo: jogaram até bomba contra o caixão.

Foi assim que me contaram. Sobre o que aconteceu mesmo, não adianta procurar nos jornais, já que a censura do tempo do Médici era total. Portanto, passo como me foi dito.


Muito agradeço à Profssa. Cinzia Sicca, que me passou detalhes da genealogia dos Cavalcantis e de sua prosopografia. Este texto foi extraído de meu livro Italianos no Brasil Colonial, no prelo pela Editora Revan.