domingo, 23 de março de 2008

1968, XV - A moveable feast, III

A terceira grande festa aconteceu duas semanas antes do Ato 5, em fins de novembro de 1968. Foi dada em minha homenagem e em homenagem a Marcos Vasconcellos. Tinha feito, dias antes, vinte e três anos. Logo em seguida recebo um presente especial, as provas em paquê de meu primeiro livro, Marcuse Vida e Obra, a ser publicado pelo João Ruy, pela José Álvaro Editor, conforme combinado em casa de meu primo, dois meses antes.

Por que Marcos Vasconcellos? Marcos tinha uma casa em frente à casa do meu amigo que me oferece a festa e também fazia anos em novembro. Casa bonita a do Marcos, estilo clean, com uma piscina que dava vista para toda a Lagoa e para o Jardim Botânico, uma varanda sobre a zona sul do Rio. Foi nesta piscina e nesta varanda sobre o cartão-postal da zona sul que, meses mais tarde, Marcos recebeu um tenente do exército que lhe deu voz de prisão. Marcos estava com uma amiga; bebia uísque, o dia era ensolarado e de céu azul. O tenentinho apressou-o, vai se arrumar, o senhor está preso! Responde Marcos, antes toma comigo um uísque. Olha a paisagem. Olha a moça aí. Aproveita um pouquinho. Você não vai ter outra chance de beber um uísque tão bom. Olha a paisagem: sua casa não tem, nunca vai ter uma paisagem como esta. Olha a moça: você jamais vai comer moça tão bonita.

Vou preso com você, sim. Mas antes relaxa meia-hora e aproveita um pouco da minha boa vida.

(Agora, algo da história da editora, da José Álvaro Editor. Quem a fundou foi um jornalista do Correio da Manhã, nos anos 50, José Álvaro. Nos domingos escrevia uma coluna, J, J & J — não lembro quem eram os outros JJ. A José Álvaro publicou muita crônica, muita coisa de autor que despontava. Em meados dos 60, Zé Álvaro vende a editora para João Ruy. No pacote, um sucesso de vendas, a coleção Vida e Obra, com biografias de Freud, Jung, Brecht, todo esse povo. Nos anos 70 a José Álvaro passa para Fernando Gasparian, que havia comprado também a Paz & Terra, de Enio Silveira. E o José Álvaro original se muda para Petrópolis, onde faz jornalismo no Diário de Petrópolis e onde, enfim, vou conhecê-lo. Ficamos amigos, passo a escrever muito para o mesmo jornal, que ele, Zé Álvaro, termina editando, até sua morte em 1979.)

A festa em minha homenagem e em homenagem ao Marcos foi num sábado, o último daquele mês de novembro. Faço as contas: 30 de novembro de 1968. A casa onde fizemos a festa tinha três andares, e ficava meio acavalada na encosta da Floresta da Tijuca subindo para o Corcovado. Da rua até sua entrada principal eram uns quarenta e cinco, cinquenta degraus. Fui para lá ajudar meu amigo. Muita cerveja, uns dez engradados com aquelas garrafas antigas de cerveja, de vidro grosso, o casco marron. Coisa de supermercado para fazer as comidas. Tinha que ajudar a levar tudo para cima, subindo aqueles cinquenta degraus. Peguei a primeira caixa de cerveja, penei, parei bufando nos primeiros vinte degraus. Chego lá em cima arrebentado, sem saber como fazer para carregar as outras caixas.

Meu amigo me mostra: olha só, diz. Se curva, joga sobre os ombros o caixote, e sobe correndo, de uma vez só, os cinquenta degraus. Pergunto como ele, quinze anos mais velho que eu, faz aquilo. Responde bruto:

— Fui besta de carga em Buchenwald.

Meu amigo, judeu, estivera preso num campo de concentração nazista. Estamos, naquele momento, a vinte e poucos anos de distância do fim de Hitler, mas me assusto e me sobressalto, uma sensação de horror, momentânea, me agarra. Ele percebe e continua, esquece, estou aqui, e já é passado.

Voltamos à preparação da festa. As caixas todas de cerveja e de cocacola na cozinha e na copa, está na hora de um cochilo, e da gente tomar banho e se arrumar. Descanso, me banho, me visto, são nove horas, o pessoal vai chegando, vai chegando.

A festa enche. A casa era grande, mas a sala fica compacta de tanta gente. Não tem muita luz, tem música alta, tem gente dançando, gente se agarrando, gente ficando muito doida. Nalgum canto, fuminho correndo, gente sentada no chão, doidona.

Como de hábito, como nas outras festas, glitteratti e beautiful people. Vejo de relance algumas atrizes de cinema, está realmente escuro, mas parece que o pessoal do cinema novo baixou todo no pedaço. Uma das atrizes se agita mais; vou chamá-la Isadora. Vestida de branco, um vestido comprido e esvoaçante, molengo, Isadora está no meio da sala, junto de uma mesa baixa, mesa de centro. Pede música lenta, colocam alguma coisa mais devagar. Sobe na mesa, e começa a se despir, começa um strip. Todo mundo bate palmas, o ritmo das palmas é diferente do ritmo da música, mas ninguém ouve mais a música, só se ouvem as palmas e só olham para Isadora, que vai se despindo. Quando tira o soutien, grita, quem quer me comer? quem quer me comer? sou muito experiente, já fiz quatorze abortos…

Apago pouco depois disso, num dos quartos da casa. O domingo, primeiro de dezembro, acorda nublado. Não vai dar praia; e começa o dezembro do Ato 5.

Houve outras muitas festas em 68, claro. Por exemplo, a festa de despedida de Marcito, Marcio Moreira Alves, em fins de setembro, na casa de Heloisa Buarque de Holanda, no Horto. Mas muita gente já contou sobre esta festa — Marcito ia para a Europa, e deixou para trás toda a tempestade que desabou feroz com o Ato 5.

Vou contar, ainda, sobre uma última das festas do ano, uma festa que teve uns dez casais, se tanto; uma orgia, bacanal, suruba, dêem o nome que quiserem. Deprimente como filme de Antonioni, como La Notte ou L’Eclisse.

Um amigo me pega em casa, em Botafogo, o Beto, numa rural wyllis. Entro, vejo gente que não conheço; umas moças até que bonitinhas, uns carinhas desconhecidos. Me diz, vamos a uma festa no Alto da Boa Vista, no meio da Floresta da Tijuca.

Vamos pela Avenida Niemeyer. Em São Conrado, uma parada, para pegar mais um convidado — convidado? era tudo uma coisa improvisada, estava parecendo. Percebo que dois outros carros estão nos seguindo; param enquanto embarca o tal convidado de São Conrado. Mais velho que nós, todos pelos vinte e poucos anos; teria talvez quarenta anos. Era piloto da Panair, logo soube; desempregado, portanto. No fim de São Conrado embicamos à direita, pela Estrada das Canoas. Passamos o viaduto, descemos a estrada junto à Pedra da Gávea, deixamos para trás a Gávea Pequena, andamos mais um pouco e chegamos a um portão com dois marcos imensos, lado a lado, de pedra. Além do portão e dos marcos, uma estrada entrando num parque escuro — ainda assim, a noite estava límpida, era junho ou julho, e a lua estava cheia, ou quase, e iluminava os topos das árvores do parque.

Entramos. Passamos o portão, os três carros. Andamos muito, quase um quilômetro. Espero ver um castelo no fim daquela estrada, e de fato a casa era quase um castelo. Neocolonial, cercada de jardins formais, com uma piscina grande na parte dos fundos, depois vi, lembrava um pouco o antigo Solar do Monjope, já demolido, em frente ao Parque Lage, o Monjope, cenário de Terra em Transe.

Era enorme. Paramos em frente da casa, onde existiam uns janelões quase se abrindo para os jardins formais, debaixo de uma balaustrada, de um balcão se debruçando sobre os jardins. A entrada era pelo lado, através de uma porte cochère; era um portal imenso, com duas folhas. De um dos carros de trás vinha andando depressa o filho dos donos da casa, trintão, meio careca apesar de ainda moço, com uma penca de chaves. Estamos esperando na porta do casarão, eu, o Beto, o aviador que morava em São Conrado, um rapaz que não conhecia, e três moças (tinham ficado quietas toda a viagem), de microssaias, isso mesmo, sainhas meio rodadas mas ultracurtas, sapatos de salto tacão, como se usava naquela época, meias de nylon, caras até que bonitinhas, mas que não combinavam nada com aquela casa.

O filho dos donos da casa luta com as chaves, abre a porta. Entramos, um hall de mármore, grande; uma porta em arco abrindo-se para um salão de pé direito muito alto, tudo branco, neocolonial, o dos janelões e, no fundo, uma escadaria para o andar de cima. O dono avisa: não quero zona no quarto da minha irmã, fica aqui em cima, e aponta na direção da balaustrada sobre o jardim.

No fundo do salão um bar americano, tipo anos 50, móveis de pé de palito, bem cenário de filme da Atlântida, ou de história em quadrinhos, das primeiras, de Mickey Mouse. Um equipamento de som ao lado, ultra-espetacular, com altofalantes eletrostáticos.

Os dez ou doze casais enchem logo o salão. O dono da casa, Carlinhos, coloca duas ou três garrafas de uísque bom em cima do bar, e copos e dois baldes de gelo. E umas comidinhas, biscoitinhos salgados.

Mas estou distraído com os quadros nas paredes. Tinha uma paisagem de Antonio Parreiras; dois retratos, um homem e uma mulher, de Rodolfo Chambelland, e um óleo pequeno que me parecia Portinari, embora sem assinatura. Tudo iluminado com luzinha em cima (o homem e a mulher retratados por Chambelland, depois perguntei, eram os avós do Carlinhos).

Tenho que arranjar companheira, ou vou sobrar. Perto de mim uma moça moreninha no uniforme de todas, microssaia e sandália de tacão. Tem música, a gente dança. No meio da sala a mesa baixa inevitável, e uma das moças sobe ali e começa um strip — parece que mesa de centro de sala é como queijo de inferninho, mulher tem que subir lá e tem que fazer strip.

O ambiente é estranho; meio dissonante. Os casais se pegam, uns somem nos quartos (menos no quarto da irmã do Carlinhos, isso todo mundo respeitava, até porque ele lembrava a proibição de tempos em tempos), outros vão se guentando nos sofás da sala.

Até que o aviador de São Conrado, o piloto da Panair começa a falar. Fala baixo, mas as pessoas ouvem sua voz, mesmo que envolvidas nas transas de cada um. Fala da amargura da sua vida, da mulher que largou ele, dos filhos que queria ter tido, dos fracassos pequenos de seu dia a dia. Fracassos dolorosos porque medíocres. Infelicidades pequenas. Fala em voz baixa, desanimada. Fala como no refrão de A Canção da Terra, de Mahler, dunkel ist das Leben ist der Tod. Negra é a vida, negra é a morte.

Já tendo completado minhas atividades ali com uma daquelas meninas, ouço o aviador na sua fala insistente, fala de profeta. E vejo ao fundo, ao som da voz do aviador, uma cena erótica desesperada: um carinha sentado no sofá, uma moça com a cabeça no seu colo, alongada no mesmo sofá. Agarrava-se no corpo do rapaz, fazia um vai-e-vem furioso e sem fim com a cabeça, e o rapaz estremecia como se doente de dança de São Guido.

(De relance, agora, num flash de memória, uma cena semelhante. Ipanema, de tarde, tarde de outono, meio friozinha, chuvosa, no quarto de um apartamento dos anos 40 que ficava numa das ruas transversais cheias de árvores; este, o cenário. A namorada se aplica em trabalhos manuais e orais no namorado, que geme baixinho. A música de fundo era mais adequada, melhor que as lamentationes, os threni, do aviador — era Guiomar Novais tocando o concerto em lá menor de Schumann, o concerto de onde foi chuchada Besame mucho.)

E o aviador sempre falando do negrume da vida e do negrume da morte.

Cinco da manhã, surgia a filha da manhã, dos dedos de rosa a aurora. Vou até a balaustrada que dava para o quarto da irmã do Carlinhos ver o nascer do Sol. O parque da casa era imenso; como que continuava num mar de árvores até o horizonte, ao fundo, a Pedra da Gávea, os morros da Floresta da Tijuca. Carlinhos vai lá me pegar, reclamando, pois o quarto da irmã era off limits. Digo, estou só vendo o jardim.

Diz, tá na hora de ir embora. Não quero que o caseiro nos encontre; ele abre a casa às oito.

Deixo rhododáktulos eós, dos dedos de rosa a aurora, para trás. E também a negritude da vida do nosso bom aviador.

quinta-feira, 20 de março de 2008

1968, XIV - A moveable feast, II

A segunda grande festa foi o Baile da Baronesa.

Para mim, começou na manhã de sábado. Era nos começos de novembro de 68; sábado de Feira da Providência. Naqueles anos a Feira da Providência realizava-se na Lagoa, junto da Hípica, e era o lugar onde você tinha que ir para saber das coisas, dos programas, das festas. Fui com uma pintora — vinte e poucos anos, pele muito branca e cabelos muito pretos e olhos pretos pintados tipo olhos de Cleópatra. E corpo violão, bem violão. Brincava com isso, se fazia de gostosa, era toda caras e bocs; mas pintava quadros interessantes. Ia vender quadros nalguma barraca — tinha o tal Setor Umuarama, sei lá por que levava esse nome — cheio de meninas bonitinhas, era o setor principal, e minha amiga (vou chamá-la de Marise) a pintora me arranjou uma credencial de ajudante-umuaramesco, e lá fui eu, dez da manhã, a feira abrindo, procurar a barraca da Marise.

Me perguntava ali por que ela, Marise das caras-e-bocas, tinha me escolhido como seu par. Bom, a resposta era óbvia; eu era um dos glitteratti do momento, ainda que um glitteratto meio de segundo plano, de modo que merecia acompanhar a Marise caras-e-bocas, Marise dos olhos de Cleópatra, Marise corpo de violão.

E ela fazia, sim, caras mis e zilhões de bocas; não falava, posava. E eu, junto dela, de glitteratto coadjuvante.

A festa da noite foi combinada ali; era o Baile da Baronesa. Alguém, parece que o Jaguar, alugava um casarão numa rua interna que ficava entre a Farani e o comecinho do Flamengo. A casa estava plantada no meio de um jardim enorme, muitas árvores mas também muitas lâmpadas iluminando as folhagens, energia ainda era coisa barata. À volta da casa uma varanda bem larga, e lá dentro, salões e mais salões, no primeiro andar, e quartos e mais quartos no segundo andar. O ambiente era muito doido; agora, relembrando aquela festa a quarenta anos de distância, eu sozinho — Marise das mil caras e bocas tinha sumido logo depois de entrarmos na festa — andando pelos salões em baixo, penso que as coisas eram um pouco feito a bacanal da sociedade secreta em Eyes Wide Shut de Kubrick. Mas sem solenidade, com escracho; e sem sexo explícito (que devia estar acontecendo, se fosse o caso, no segundo andar). Tinha, sim, nos salões, muito casal se atracando sem dar grande bola ao pessoal à volta, e sem chegarem às vias de fato. E eu passeando, devagar e sem o que fazer, só olhando.

Lembro de flashes da festa, cenas rápidas. Um deles: estou entrando num corredor quando vejo, melhor, revejo, reencontro, um professor meu de ginásio e colegial, professor que não via há cinco anos. Era boa pinta, elegantíssimo, no colégio; continuava boa pinta e super-elegante. Todo mundo sabia que ele era casado com uma passista de escola de samba — e agora, via esse meu professor surgir de um dos cantos do corredor no Baile da Baronesa, agarrado com a mulher e com uma das cunhadas. Me olha, me reconhece, e me fala como se não me visse há cinco minutos, e não há cinco anos, de porre mas distinto como sempre, Francisco Antonio, não está com inveja de mim? Não quer nos acompanhar?

Foi em começos de novembro, mês e meio antes da débâcle do Ato 5.

1968, XIII - A moveable feast, I

Era mesmo como se houvesse uma festa contínua, desde sempre, desde há muito. A movable feast, como na Paris dos anos 20 de Hemingway. Vou contar sobre algumas dessas festas que se juntavam na festa contínua de 66, 67, 68.

Uma primeira festa: me reencontro com um primo que não vejo há muito tempo, o Zé. Na Sucata, uma boate, boîte de nuit, ainda se dizia, discoteca; a Sucata ficava ali na Lagoa, perto da sede do Flamengo. De fora parecia pequena; dentro até que era bem grande. Escuro, luz negra, dentes brilhando na cara das pessoas, gim tônica brilhando feito fogo fátuo com a luz negra na mão de todo mundo. Estava com uma moça que tinha conhecido quando fiz uma conferência na universidade, e, de repente, enorme, grandalhão, vejo a figura do Zé-primo me abraçar e me agarrar, e nos levar para a mesa dele. No meio da música berrada me avisa que, na semana seguinte, sábado, ia oferecer um jantar; que eu fosse lá.

Fui, sozinho. O apartamento era grande, e ficava exato na Curva do Calombo, na Lagoa, segundo ou terceiro andar. Quando chego, já está cheio, lotadíssimo de gente. Tudo glitteratti, intelectuais e beautiful people. Me sinto Marcel chegando no primeiro jantar nos Guermantes, e sendo colocado logo ao lado da Princesse de Parme. No caso a Princesse de Parme do jantar do Zé é uma mulher muito bonita, muito elegante — e gentil comigo, que estou todo sem jeito, sou tímido até hoje, caindo ali meio de paraquedas. E' Helô Amado, mulher de Eurico Amado. A Princesa de Parma trata Marcel como um seu igual, apresenta-o ao filho, diz que devem se encontrar. Helô comenta que lê o que escrevo no Correio da Manhã, e pergunta se já publiquei algum livro. Seu interesse me surpreende, e me acalma. Não, não publiquei nenhum livro. Levanta-se, então, e busca João Ruy Medeiros, dono da José Álvaro Editor, e me apresenta a João Ruy.

Ainda não comi, anunciam um buffet frio, e vou para a mesa com João Ruy. Estou já meio zonzo, com o uísque e toda a imensa badalação da festa. A comida é fantástica: uma mousse de salmão (salmão era muito raro no Rio naquele tempo), salada fria de massas, algum caviar. Como até para evitar ficar de porre muito rápido, e volto a conversar com João Ruy. Me diz que havia lido tudo o que eu tinha escrito sobre Marcuse no Correio da Manhã, e me pergunta, você não quer escrever um volume sobre Marcuse para a coleção Vida e Obra?

Tô de porre: topo na hora. Vai ser meu primeiro livro — e foi.

Estamos em começos de setembro de 1968. A dois meses do ato 5. Mas ninguém ali pressente o desastre, o final que tudo aquilo vai ter. Ciro Kurtz, deputado estadual pelo MDB, membro do partidão, fala convicto e eloquente sobre o avanço das esquerdas e o recuo dos militares (lembro de sua mulher, muito bonita, discreta, ouvindo quieta o que o Ciro dizia). Fausto Wolff, enorme, lourão, berra feito um alucinado. Vem a comida quente, já quase meia-noite, ou talvez depois de meia-noite. Um tagliatelli al triplo burro. Mesmo sendo coisa simples, é delicioso. Na sobremesa, licores. Ou seja, tudo direitinho conforme o figurino.

Três da manhã, vou embora. Daniel Tolipan vai me dar uma carona no seu fusquinha vermelho.

Quando estou saindo, João Ruy me dá o cartão e marca um encontro comigo durante a semana para acertarmos os detalhes do livro. Descemos pelo elevador. Quando Daniel e eu saímos para o carro, parado do outro lado da rua, na calçada divisória, a gente vê Fausto Wolff meio debruçado para fora da balaustrada da varanda do apartamento, aos berros, Chicão, Daniel, não vão fazer besteira, não vão fazer bobagem!

Alguém puxa o Fausto para dentro antes que resolva dar uma de super-homem e se atirar lá de cima; entro no carro e luto para não adormecer, até Daniel me deixar em casa.

terça-feira, 18 de março de 2008

1968, XII - Intelectuais em revoada

No começo de março, um de meus professores, o Smil, me diz, Sergio Waissman, da Editora Delta, está precisando de um assessor para ajudá-lo a montar um projeto de financiamento de uma gráfica. Te recomendei. Vai se encontrar com o Sergio.

Me entrevistei com o Sergio na casa dele, em Ipanema, num sábado de manhã; estava tudo meio tumultuado porque havia nenem novo na casa, o primeiro filho dele e da mulher, aliás prima de um grande amigo meu da Escola de Química, onde estudávamos. Entrevista rápida, meia-hora, fui apresentado rapidinho ao bebê numa entrevista que demorou mais tempo, e, dois dias depois, segunda-feira, começo o trabalho.

O prédio da Editora Delta ficava na Travessa do Ouvidor, bem no centro do Rio, a cinquenta metros da Sete de Setembro. A sala do Sergio, onde eu trabalhava, era no terceiro andar, grudada ao setor de produção editorial, o setor divertido da casa, digamos assim. Meu trabalho era quase coisa de contabilista: preencher planilhas demonstrando custos e necessidades de financiamento para a gráfica que a Delta estava montando. A gráfica iria imprimir o Grande Dicionário Delta-Larousse, enciclopédia sendo escrita a dois passos de minha sala, na redacão do Projeto L3, nome em código do tal dicionário.

Era uma redação cheia de estrelas. No topo, Antonio Houaiss, magro, quase seco, falando baixo, voz e termos afiados como navalha Solingen, e gentil e sedutor como nunca vi ninguém. Junto dele, sempre, de terno meio destrambelhado, gago e com milhares de tiques, Carpeaux, Otto Maria Carpeaux. Ajudando o Carpeaux, sua versão brasileira, de óculos pretos de lentes estreitas, lentes muito grossas, Ismael Cardim, super-erudito. Na redação, preparando os verbetes, um bando de gente, entre os quais Ivan Junqueira e Luiz Costa Lima.

Me habituei a almoçar com o pessoal da redação do L3. Houaiss, Carpeaux e Cardim almoçavam num restaurante mais cheio de prosápias ali perto; a turma remanescente da redação, e eu junto, num botequim junto do prédio da editora, onde o melhor prato era um camarão à baiana servido numa frigideira onde os camarões boiavam numa lava fumegante de dendê (não sei como não tinha o maior piriri depois de comer aquilo, e comia os camarões na lava de dendê quase todo dia).

Me lembro das conversas com Carpeaux. Alguns da redação do L3 chamavam Carpeaux direto de Carpeaux — Carpeaux, vê isso aqui, checa esse dado, verifica tal informação, coisa que Carpeaux fazia sempre muito solícito. Mas eu, garoto de vinte e dois anos, só me dirigia a ele como Dr. Otto. Perguntei muita coisa a Carpeaux, que quase cercava pelos cantos. Por exemplo, como era Mahler regendo? Me contou que Mahler era baixo, muito magro, agitado no andar, e que regia com movimentos bruscos e irregulares. Me contou o tal encontro que teve com Kafka, cujo nome não compreendeu (Kauka? Nome estranho... teria dito). Conversamos sobre os Principia Mathematica de Whitehead e Russell, e também sobre Spengler. Ou sobre Freud e a Viena dessa gente toda.

Mas era difícil conversar com Carpeaux, muito gago, cheio de tiques, e evidentemente com dificuldade de articular certos sons do português, língua que no entanto escrevia tão bem e com tanta clareza, tanta limpidez. Doze anos depois, quando, em 1980, era um junior post-doc no Departamento de Matemática da Universidade de Rochester (NY), nos Estados Unidos, lembrei-me de minhas conversas com Carpeaux ao cercar, pelos corredores, outro remanescente daquele tempo, Volya Bargmann, assistente de Einstein e seu colaborador, a quem vivia perguntando sobre tudo quanto é coisa, a quem importunava para saber tudo a respeito de como era Einstein no convívio pessoal, como era o quotidiano daqueles que haviam feito a física do século XX, coisas assim.

No caso de Carpeaux, perguntava-lhe sobre como era o quotidiano da gente que havia construído a cultura do século XX, Mahler, Freud, Kafka, Spengler, Wittgenstein. As gentes que fizeram o século XX.

1968, XI - Uma festa contínua

Óbvio que é uma idealização, agora, a quarenta e tantos anos de distância, mas é como se a década de 60 do século XX tivesse sido do mesmo jeito que a Idade Média de Huizinga: muito mais colorida e rica de acontecimentos do que os tempos de hoje.

A frase de Huizinga, no começo de O Declínio da Idade Média, precisa ser citada para que possa fazer dela uma paráfrase ou uma variação que a tome como tema: quando o mundo era cinco séculos mais jovem, os acontecimentos da vida se destacavam com os contornos muito marcados. Da infelicidade à felicidade, a distância parecia muito maior; toda experiência ainda possuía esse caráter imediato e absoluto que têm o prazer e o sofrimento para o espírito de uma criança.

Nos anos 60 do século passado, era como se a gente estivesse descobrindo cores e sabores, sons e imagens novas. A roupa dos anos 50 era de uma cor só: cinza, cinza claro, cinza escuro. Uma vez, eu pequeno, me colocam uma camiseta que dizem ser escandalosa, fantasia para um baile de carnaval infantil em Petrópolis. Era uma camiseta de gola canoa, branca, listada na horizontal com fios fininhos vermelhos. De longe, nem se percebiam aqueles fios fininhos — mas só sua existência virtual, quase imperceptível, fazia ser escandalosa a camiseta.

Dez anos depois dessa minha experiência com a camiseta-escândalo, estou no Aterro do Flamengo, tarde de muito sol, muita luz. E' 1966, um sábado, e participo de um happening, acho que o primeiro dos happenings que vão acontecer no Rio. Hélio Oiticica, Ligia Pape, Frederico Morais teorizando e gesticulando com as mãos, como se fosse um maestro e estivesse regendo aquela orquestra de artistas plásticos. Toda vestida de rosa-abóbora, Georgiana Russell, filha de Sir John Russell, embaixador inglês. De mini-vestido Mary Quant, coloridíssimo, Georgiana pulava de artista em artista, quase como se estivesse dançando.

Não era a única a estar vestida com cores muito fortes. Ligia Pape, com seu cabelo liso, preto preto, lembrando o corte de Vidal Sassoon para Peggy Moffitt, estava com um vestido dividido em espaços verde-intenso e branco. São as imagens que me ficaram. Cor forte, muita luz, figuras nítidas, intensas. Estava ali com um amigo, o Tixo, ótimo artista plástico — ainda tenho em casa alguns desenhos dele, o Tixo vestido seja com parangolés do Oiticica, seja com sua própria versão do parangolé, uma jibóia enorme de plástico, com quase cinco metros de comprimento, que ele enrolava à volta do corpo de quem se dispusesse a servir de moldura ou soco para seu trabalho.

Lembro das festas, também. Daniel Tolipan dava uma festa que começava todo sábado ao meio-dia, e só terminava na madrugada de segunda-feira. Daniel tinha um apartamento enorme na esquina de Visconde de Albuquerque com Ataulfo de Paiva, finzão do Leblon. Servia um uísque espetacular, algumas comidinhas; de vez em quando as pessoas saíam, iam fazer uma boquinha num canto qualquer ali perto, e voltavam. Mas o bom da festa de fim de semana de Daniel eram as pessoas, claro. Já conhecia o Daniel de algum dos cantos do Rio, mas fui levado na casa dele por uma artista plástica, Regina Vater. Ficamos muito amigos, Daniel e eu. Outra festa contínua eram as dadas por Mário Fiorani, cineasta, gordão barrigudo, de barba branca, ou como ele dizia, em fantasia permanente de Papai Noel, barriga, barba grande, e saco cheio. Numa dessas festas do Fiorani vi, pela primeira vez, o que é mulher capaz de atrair machos em revoada: num canto estava uma moça de micro-saia, botas pretas altas, cabelo louro escorrido igual ao da Nico namorada do príncipe em La Dolce Vita, e, como disse uma amiga minha descrevendo caso semelhante, digo isso e dou a autoria porque a metonímia não é minha, toda cercada de testosterona por todos os quadrantes.

Não sei quem era a moça, não me lembro de tê-la visto de novo nalgum outro canto naqueles tempos, mas lembro também que andando sem rumo pelo apartamento do Mário (ficava num primeiro andar na esquina de Copacabana com República do Peru), entrei meio de inocente num quarto com a porta entreaberta, e vi um casal transando na cama do quarto. Em 1967 ainda não era comum, trepadas ao léu em festas.